Grammy cria categoria para melhor capa de disco e reabre debate sobre reconhecimento de criadores visuais na música

Pela primeira vez, designers e artistas gráficos que assinam a identidade visual de álbuns e singles terão uma categoria exclusiva no Grammy 2026.
Foto de Nathália Pandeló
Nathália Pandeló
Grammy Awards

A partir da próxima edição do Grammy Awards, prevista para 1º de fevereiro de 2026, uma nova categoria promete ampliar a visibilidade de profissionais que até hoje têm seu trabalho frequentemente negligenciado no mercado da música: a de Melhor Capa de Disco. O anúncio foi feito pela Recording Academy, junto a outras alterações nas regras da premiação.

A criação da nova categoria se deu em paralelo à fusão das antigas Melhor Projeto Gráfico (Best Recording Package) e Melhor Box ou Edição Especial Limitada, que passam a concorrer juntas em uma nova versão da categoria best recording package. Já o prêmio de melhor capa fica reservado a lançamentos avulsos. A decisão foi justificada pelo CEO da academia, Harvey Mason Jr., como parte de um esforço para “refletir a música de hoje” e reconhecer todos os criadores envolvidos.

Impactos da nova categoria para os profissionais da arte visual

A novidade foi bem recebida por profissionais do setor, que historicamente enfrentam dificuldades para receber os devidos créditos. Para o designer multimídia Oga Mendonça, responsável por capas de álbuns como “Xênia” (Xênia França), “Orgunga” (Rico Dalasam) e “Rá” (Rodrigo Ogi), o novo prêmio pode ajudar a jogar luz sobre um segmento pouco valorizado.

“Sem dúvida, acho que vai ter impacto. Mas é engraçado: não acho que a gente vai começar a fazer capa pra ganhar Grammy. Acredito mais que seja uma oportunidade de gerar repercussão e ampliar o portfólio para trabalhos fora da música, porque dentro do mercado musical ainda é raro ver verba pensada pra arte de capa”, afirma.

Para Pedro Kurtz, diretor de Operações e Conteúdos da Deezer, o reconhecimento dos designers está alinhado à forma como o consumidor atual se conecta com os artistas. 

“A nova categoria seguramente abrirá espaço para que o público geral e fãs de música possam conhecer uma categoria de artistas que têm pouco ou nenhum destaque nas premiações”, reflete.

Caminhos diferentes entre discurso e prática das plataformas

Apesar do apoio institucional declarado por algumas plataformas, a prática ainda é limitada. Mendonça, que também é ilustrador e filmmaker, critica a forma como os serviços de streaming lidam com os metadados visuais: 

“Eu acho o jeito que as plataformas lidam com crédito e autoridade terrível. Não acreditam nem produtor direito, quanto mais artista visual. A gente precisa disputar esses espaços”.

A falta de visibilidade para os designers também está ligada às lacunas nos créditos da era do streaming. Mesmo os dados mais básicos, como autorias musicais e produção, ainda são exibidos de forma incompleta ou incorreta pelas plataformas. Essa é uma questão estrutural: os serviços apenas reproduzem os metadados enviados no momento da distribuição, responsabilidade de gravadoras, selos ou dos próprios artistas e suas equipes.

Procurado pelo Mundo da Música, o Spotify não respondeu se pretende exibir os créditos de capa nas páginas de álbuns e singles, mesmo quando os metadados são preenchidos corretamente. Já a ONErpm informou que seu sistema de distribuição atualmente permite incluir os créditos de Cover Designer, Designer, Illustrator e Photographer.

Narrativas visuais e impacto no desempenho dos lançamentos

Oga Mendonça, André Agra, Pedro Kurtz e Renata Gomes
Oga Mendonça, André Agra, Pedro Kurtz e Renata Gomes (Crédito: Divulgação)

A discussão em torno da relevância das capas também passa pelo papel que essas imagens cumprem na construção de narrativas. Para Renata Gomes de Melo, diretora de marketing artístico da ONErpm Brasil, “quando a capa tem conexão clara com o storytelling proposto pelo artista, o projeto ganha robustez e impacto como um todo”.

Segundo Renata, capas bem construídas ampliam o potencial de interpretação das faixas e fortalecem a conexão com o público: 

“Os artistas que conseguem criar essa comunicação transmídia com consistência e unidade muitas vezes usam diferentes mídias (como as próprias capas) para revelar detalhes e gerar conversa”.

Entre a obsolescência do físico e a força das redes sociais

Oga Mendonça avalia que a capa perdeu parte da relevância comercial desde que as lojas físicas deixaram de ser o principal ponto de contato com os discos. 

“Eu acho que ela perdeu um pouco da importância, porque a loja física perdeu a importância. Antes, você comprava disco porque ele chamava atenção na prateleira. Hoje, quem vai numa loja de vinil geralmente já sabe o que quer”.

Por outro lado, ele acredita que a capa ganhou uma nova função nas redes sociais e no ecossistema digital: 

“Hoje a imagem da capa tem que funcionar num quadradinho minúsculo no streaming ou virar um post potente pras redes. Pode virar visualizer, ser desdobrada em clipe, banner… Eu acho que é o formato visual mais compacto e rápido que você pode jogar nas redes. Não é só sobre chamar atenção, é sobre complementar a obra”.

Mudanças nos estilos e formatos das capas atuais

O artista também comenta como as capas têm mudado com a consolidação do streaming, em que a arte é sempre acompanhada pelo título exibido nas plataformas.

“Uma coisa que eu reparava muito antes nas capas, principalmente nas capas de artistas alternativos, é que eles tinham abandonado há muito tempo o lance do lettering. O nome do disco escrito na arte já não importava tanto, porque de certa forma é redundante.”

Ele observa que isso abriu mais espaço para a fotografia, mas também trouxe uma perda de identidade: 

“Hoje em dia vale só a foto da pessoa e uma foto de rosto. Ao mesmo tempo que liberta a gente de umas coisas, da tipografia e tal, acaba também perdendo um pouco da identidade”.

Grammy, IA e os desafios da autoria no Grammy

A chegada da nova categoria acontece em um momento em que o uso de inteligência artificial em projetos gráficos também levanta questões sobre autoria e transparência. A Recording Academy afirmou que pretende diferenciar obras feitas com ou sem o uso de IA generativa, e que apenas trabalhos com “contribuição humana significativa” serão elegíveis, regra já aplicada em outras categorias.

O impacto dessas novas tecnologias também se reflete nas condições de trabalho. 

“Não acho que vai surgir gente criando capa só pra ganhar Grammy. Mas talvez o hype da categoria ajude a abrir outras oportunidades e ampliar o reconhecimento, especialmente para quem produz de forma independente”, afirma Mendonça.

Validação simbólica e novas possibilidades para criadores

Ainda que a categoria não signifique uma mudança imediata na estrutura da indústria, a criação do prêmio pode representar um novo patamar simbólico para os criadores visuais. Como avalia Oga, “é o tipo de conquista que, se o designer souber trabalhar, pode gerar outros frutos. Não só na música, mas em outras áreas criativas”.

A expectativa é que a nova categoria do Grammy contribua para que mais projetos musicais considerem desde o início a participação ativa de designers, ilustradores e outros criadores visuais na definição da identidade de um lançamento. Com a visibilidade gerada pela premiação, profissionais que historicamente ficaram à margem podem finalmente ocupar um espaço mais central na comunicação da música.

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