A cadeia produtiva da música ao vivo no Brasil é formada por profissionais essenciais, como técnicos de som, montadores de palco, operadores de luz, roadies e músicos contratados. Mesmo com a expansão do setor, esses trabalhadores seguem lidando com vínculos informais, jornadas irregulares e exposição a situações de risco, muitas vezes sem garantias formais de proteção.
A indústria de shows, no entanto, representa uma engrenagem econômica significativa. Segundo a Abrape (Associação Brasileira dos Promotores de Eventos), os eventos movimentaram mais de R$ 131 bilhões em consumo em 2024, com expectativa de ultrapassar R$ 140 bilhões em 2025. O número de empregos formais no setor já supera em mais de 60% os níveis pré-pandemia, impulsionando o turismo, a cadeia de serviços e o mercado regional. O crescimento da música ao vivo aumenta a visibilidade da indústria como um todo e também amplia o espaço para debates sobre as condições de quem faz esse circuito acontecer nos bastidores.
Situações de risco, como quedas, incêndios ou falhas de estrutura, não afetam apenas os profissionais de produção e certamente não se restringem ao Brasil. No último final de semana, um fã do Oasis morreu após cair de cerca de 50 metros durante um show da banda no Wembley Stadium, em Londres. A investigação segue em curso e levou a questionamentos sobre a segurança em grandes arenas, mesmo em países com regulamentação mais rígida.
Poucos dias antes, na Bélgica, um incêndio atingiu parte da estrutura do Tomorrowland 2025. As chamas se espalharam por uma área próxima ao palco principal, forçando a evacuação do espaço. Ninguém ficou ferido, mas a situação gerou pânico e mostrou como falhas estruturais ou acidentes imprevistos podem colocar em risco a equipe de montagem e outras milhares de pessoas, caso ocorram durante os espetáculos.
Situações como essas expõem a vulnerabilidade do setor e reforçam a necessidade de olhar com mais atenção para as condições de trabalho e segurança que envolvem a indústria da música ao vivo em todos os níveis.
Falta de vínculo, excesso de risco
Boa parte dos profissionais envolvidos na montagem e operação de shows e festivais não possui contrato formal. A contratação por cachê ou via MEI, as terceirizações em cascata e a ausência de fiscalização contribuem para a falta de rastreabilidade em casos de acidentes ou falhas nas condições de trabalho
O roadie e teleprompter Marcos Almir, que integrou equipes técnicas de artistas como Caetano Veloso, Maria Bethânia, Ney Matogrosso, Blitz e Legião Urbana, afirma ter acompanhado de perto situações em que faltaram medidas adequadas de segurança em casas de shows e eventos ao ar livre. Independente do ambiente, externo ou interno, fato é que há grandes cargas elétricas passando por toda a estrutura de um palco.
“Tive um show no Nordeste que o palco era preso por cordas com péssima qualidade e meio ‘qualquer nota’. Ao entrar no palco choveu muito e estávamos eu, o Ney Matogrosso e o outro técnico dele. Foi criando uma bolha d’água e caiu quase na nossa cabeça.”
Além de estruturas improvisadas, há falhas recorrentes na contenção lateral dos palcos.
“Já tive amigos que se machucavam e caíram do palco. Algumas vezes por ‘vazarem’ pela lateral sem ter nenhum tipo de fechamento”, completa.
A advogada Magda Hruza, especialista em negociação de conflitos individuais e coletivos, explica que essas categorias possuem regulamentações próprias, mas que nem sempre são respeitadas.
“Inicialmente, há que ser registrado que tanto músicos como técnicos são profissões com regulamentação própria, ou seja suas relações com contratantes seguem regras estipuladas nestas leis e também nas normas coletivas firmadas com os sindicatos patronais e de trabalhadores que agregam condições de trabalho, não se aplicando a CLT – Consolidação das Leis do Trabalho”, ela esclarece.
EPIs, acidentes e ausência de fiscalização nos shows

Apesar dos relatos constantes, o setor de shows ainda carece de estatísticas próprias sobre acidentes. Isso impede que sejam criadas ações preventivas e dificulta a responsabilização em casos graves. As rotinas de trabalho envolvem diferentes graus de informalidade, prazos apertados e estruturas temporárias, o que pode dificultar a prevenção de acidentes e a definição clara de responsabilidades.
Magda aponta caminhos que poderiam ser seguidos:
“A primeira forma de proteção deve ser a de terem habilitação legal específica exigida para o exercício destas profissões, em especial as normas regulamentadoras para eletricidade e altura, por exemplo, além de utilizarem de equipamentos de proteção individual para o trabalho. Além disso, as condições para proteção devem ser negociadas via estipulação de seguros que possam proteger tanto contratantes como contratados em caso de eventuais acidentes que possam provocar afastamento das atividades laborais.”
Mesmo quando há estrutura nos shows, muitas vezes não há pessoal técnico suficiente para garantir a segurança de todos. Os prazos apertados de montagem e desmontagem, as mudanças de escala e os cachês baixos tornam o cenário ainda mais inseguro.
MEIs, PJs e o limbo previdenciário
A formalização por meio de MEI ou PJ é comum entre músicos, produtores e técnicos. Embora torne o processo mais prático para os contratantes, também transfere ao trabalhador toda a responsabilidade sobre recolhimentos e contribuições.
“Nesse meio não consigo enxergar nenhuma mudança. Posso estar sendo pessimista, mas somos apenas prestadores de serviço”, afirma Marcos.
Segundo Magda, mesmo nesse formato é possível garantir proteção.
“A possibilidade de serem contratados mediante contratos diversos do contrato direto não podem ser confundidos com as regras previstas para a contratação direta e existem possibilidades de negociarem condições de trabalho que lhes assegurem direitos. A cobertura previdenciária é assegurada pelo devido recolhimento das contribuições previdenciárias na forma da própria legislação e os contratantes devem efetivamente fiscalizar este recolhimento ou efetuar a retenção e imediato repasse ao órgão previdenciário”, alerta.
Sem esse acompanhamento, muitos profissionais do mercado de shows e eventos em geral ficam sem acesso a benefícios como aposentadoria, auxílio-doença ou cobertura em caso de acidente.
Condições irregulares e denúncias em grandes eventos
A ausência de vínculo formal e de fiscalização pode levar a situações que fogem ao controle das organizações principais. Em 2023, cinco trabalhadores terceirizados do Lollapalooza São Paulo foram resgatados em condição análoga à escravidão, segundo operação do Ministério do Trabalho em conjunto com o Ministério Público do Trabalho. Os relatos incluíam jornadas sem escala definida, ausência de EPIs e trabalhadores dormindo sobre pallets. Na ocasião, a organização do festival afirmou que todas as empresas contratadas deveriam seguir as normas legais e que colaboraria com as investigações.
Em 2024, 14 trabalhadores foram encontrados em situação semelhante durante a realização do Rock in Rio, também por ação da fiscalização federal. Segundo os auditores, os profissionais atuavam por turnos de até 21 horas, com apenas três horas de descanso, e estavam sob responsabilidade de uma empresa subcontratada. A organização do evento, por sua vez, declarou que repudia qualquer prática irregular e que exigiria explicações da contratada.
Embora sejam casos pontuais e extremos, essas ocorrências destacam a fragilidade dos mecanismos de controle sobre as condições de contratação no setor de shows. Em geral, os trabalhadores envolvidos estavam vinculados a empresas de serviço temporário, com pouca supervisão direta por parte das produtoras principais.
O papel dos sindicatos e das entidades de classe
A busca por segurança e garantias passa necessariamente pela negociação coletiva. Para Magda, esse é o caminho mais viável diante da realidade contratual do setor.
“A negociação de direitos nos instrumentos contratuais, tanto individuais como coletivos, pelos respectivos sindicatos é o melhor caminho para o estabelecimento de regras que assegurem benefícios. Há nas legislações destes profissionais peculiaridades quanto às formas contratuais que devem ser formalizadas e contabilizadas na forma prevista”, detalha.
A advogada ressalta que os sindicatos podem negociar mais do que salários.
“O recolhimento das contribuições previdenciárias assegura a aposentadoria e demais benefícios, como planos de saúde. Eles podem ser também negociados e oferecidos pelas entidades representativas destes profissionais”, pontua.
Embora o cenário se mostre complexo atualmente, foi durante a pandemia que a ausência de uma rede de apoio ficou evidente no setor de eventos ao vivo.
“Muitos não tinham o que comer na nossa área, e muitos artistas com quem trabalhávamos sequer ajudaram de alguma forma. Poucos foram os que ajudaram”, lembra Marcos.
Invisibilidade estrutural e ausência de dados
Mesmo com o crescimento da música ao vivo e do mercado fonográfico, os dados sobre a força de trabalho que sustenta o mercado de shows seguem escassos. Em 2024, o mercado fonográfico nacional cresceu 21,7%, atingindo R$ 3,486 bilhões de faturamento, segundo a Pro-Música Brasil.
Apesar desses indicadores positivos, não se sabe quantos técnicos atuam no Brasil, quantos estão formalizados ou quantos sofreram acidentes no exercício da função. A informalidade impede o registro e, sem registro, não há política pública eficaz.
“Eu honestamente sigo achando que temos que tentar investir em algo que seja um resguardo pro nosso futuro. Aposentadoria privada, ou algo que traga algum retorno no futuro. Pois nesse meio não consigo enxergar nenhuma mudança”, conclui Marcos.
A organização coletiva, a qualificação profissional e a formalização das relações de trabalho são caminhos possíveis já previstos em leis e convenções específicas. O avanço dessas frentes depende da articulação entre contratantes, profissionais, entidades sindicais e poder público.
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