Inteligência artificial: Mais de 1000 artistas lançam álbum silencioso para protestar no Reino Unido

O protesto silencioso é contra mudanças nas leis de direitos autorais que podem beneficiar empresas de inteligência artificial.
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Nathália Pandeló
Capa e contracapa do álbum
Capa e contracapa do álbum "Is This What We Want?", lançado por mil artistas britânicos contra a inteligência artificial (Crédito: Reprodução)

O impacto da inteligência artificial na música tem gerado discussão global, mas no Reino Unido a polêmica tomou outra proporção. Uma proposta do governo britânico pode permitir que empresas de IA usem conteúdo protegido por direitos autorais sem necessidade de licença prévia. Diante disso, mais de mil artistas se uniram para um protesto inusitado: o lançamento de um álbum completamente silencioso.

Batizado de “Is This What We Want?” (ou seja, “É isso o que queremos?”), o projeto conta com nomes como Kate Bush, Damon Albarn, Annie Lennox, The Clash, Hans Zimmer e Radiohead. O disco, lançado nesta terça-feira (25), tem uma tracklist que completa a frase “O governo britânico não deve legalizar o roubo de música para beneficiar empresas de IA”. Os lucros serão revertidos para a organização de caridade Help Musicians.

O debate sobre o uso de obras por IA

A principal preocupação dos artistas é o modelo de “opt-out” proposto pelo governo. Pelo formato sugerido, as empresas de inteligência artificial poderiam usar músicas, livros e outras criações para treinar seus sistemas, a menos que os titulares dos direitos autorais se manifestem contra. A questão levantada pelos artistas é a dificuldade de monitorar o uso de suas obras por centenas de plataformas.

O governo argumenta que a medida traria segurança jurídica e transparência, mas músicos e líderes da indústria veem a proposta como uma forma de enfraquecer os direitos autorais. Max Richter, compositor e um dos organizadores do protesto, defendeu que a criação humana precisa ser valorizada e não substituída por um modelo que privilegia a automação sem garantias de remuneração justa.

“A música do futuro fará com que nossas vozes fiquem inaudíveis?” disse Kate Bush em um comunicado.

“As propostas do governo empobreceriam os criadores, favorecendo aqueles que automatizam a criatividade em detrimento das pessoas que compõem nossa música, escrevem nossa literatura e pintam nossa arte”, acrescentou Max Richter.

“Temo que sejamos a última geração de artistas capazes de construir carreiras na música do Reino Unido. Não podemos ser abandonados pelo governo e ter nosso trabalho roubado para o lucro das grandes empresas de tecnologia”, disse a artista Naomi Kimpenu, que participa da campanha.

Impactos econômicos e culturais

Damon Albarn e Annie Lennox estão entre os artistas envolvidos no protesto silencioso contra a inteligência artificial
Damon Albarn e Annie Lennox estão entre os artistas envolvidos no protesto silencioso contra a inteligência artificial

A indústria criativa britânica movimenta cerca de £125 bilhões por ano e gera milhões de empregos. Associações do setor afirmam que a proposta poderia desvalorizar a produção local e afetar a economia criativa do país. A BPI (British Phonographic Industry) e outras entidades pedem um modelo mais equilibrado, onde os artistas tenham controle real sobre como suas músicas são utilizadas por sistemas de IA.

As empresas de tecnologia, por outro lado, sustentam que a inovação depende do acesso amplo a conteúdo já existente. O grupo TechUK defende que a incerteza sobre direitos autorais prejudica o desenvolvimento da IA no Reino Unido. A discussão se estende a outros países, já que legislações semelhantes estão sendo debatidas na União Europeia, nos Estados Unidos e até mesmo no Brasil. 

O setor artístico britânico, porém, está organizado. Uma carta publicada no The Times na terça-feira, assinada por 34 importantes nomes da indústria criativa, também criticou a posição do governo. Entre os signatários estão Barbara Broccoli, Helen Fielding, Stephen Fry, Andrew Lloyd Webber, Ed Sheeran e Tom Stoppard.

O texto alerta que as propostas representam uma entrega completa dos direitos e da renda do setor criativo britânico para grandes empresas de tecnologia. Fry comparou a situação a um ecossistema desprotegido, afirmando: 

“Não se estimula o crescimento de um jardim permitindo que todas as pragas devorem seus frutos e flores, assim como não se impulsiona uma economia deixando que as inteligências artificiais explorem o trabalho dos criadores sem restrições.”

A reação da indústria fonográfica

Executivos das principais gravadoras também entraram na discussão. Lucian Grainge (Universal Music), Rob Stringer (Sony Music) e Robert Kyncl (Warner Music) manifestaram preocupação com a proposta e alertaram sobre os riscos para a sustentabilidade da indústria musical. Segundo eles, sem proteção adequada, artistas e selos podem perder receita enquanto empresas de IA lucram com conteúdo gerado por humanos.

Paul McCartney e Elton John também se posicionaram contra a proposta. McCartney reconhece que a IA pode ser uma ferramenta criativa, mas acredita que sua adoção deve respeitar o trabalho dos artistas. Ele citou um projeto recente que usou IA para recuperar vocais de John Lennon, mas destacou que essa foi uma decisão consciente e autorizada, o que difere do uso sem consentimento previsto pela legislação em discussão.

O futuro das leis de IA e direitos autorais

O desfecho da consulta pública do governo britânico será acompanhado de perto pelo mercado musical e por outros setores criativos. A discussão pode influenciar regulações em outros países e definir como a inteligência artificial interage com conteúdo protegido por direitos autorais no futuro.

A polêmica levanta questões sobre o equilíbrio entre inovação e proteção da criação humana. Para artistas e gravadoras, garantir que a tecnologia avance sem comprometer os direitos dos criadores é o ponto central. Já as empresas de IA argumentam que o acesso livre ao conteúdo existente é essencial para o progresso da tecnologia. O resultado do debate deve ter impacto na relação entre música e inteligência artificial nos próximos anos.

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