Da floresta ao streaming: os bastidores da estratégia que colocou a Amazônia como artista

A Amazônia é inserida no sistema da música como artista nas plataformas de streaming, gerando royalties e testando um novo modelo entre cultura e conservação.
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Nathália Pandeló
Lilian Fraiji, diretora do LABVERDE
Lilian Fraiji, diretora do LABVERDE (Crédito: Christian Braga)

Lançada durante a COP-30, em Belém, a iniciativa Nature x LABVERDE reúne uma coletânea de gravações ambientais feitas na Amazônia e propõe um deslocamento pouco comum no mercado musical: tratar a própria natureza como artista oficial nas plataformas de streaming. A obra transforma sons de rios, chuvas, florestas e animais em EPs distribuídos globalmente, com a arrecadação de royalties destinada a projetos de conservação e a comunidades indígenas e ribeirinhas do Baixo Rio Negro.

Transformar a Amazônia em artista, no entanto, não foi um gesto simbólico nem uma ação de comunicação ambiental. A proposta partiu de uma inquietação prática: como fazer com que a floresta deixasse de ser apenas inspiração estética e passasse a existir, de fato, dentro das estruturas formais da indústria fonográfica, com autoria reconhecida, contratos, arrecadação e destino definido para os recursos gerados.

Érica Marinho do Vale e Lisa Schonberg fazem pesquisa bioacústica nas florestas de Manaus, Amazônia
Érica Marinho do Vale e Lisa Schonberg fazem pesquisa bioacústica nas florestas de Manaus

Colocar essa ideia para funcionar exigiu um mergulho nos bastidores do sistema. Plataformas de streaming, modelos de distribuição, regras de direitos autorais e fluxos de royalties foram pensados para operar exclusivamente com pessoas físicas e jurídicas humanas. A ausência de mecanismos legais capazes de traduzir o reconhecimento da natureza em algo operável foi o primeiro grande obstáculo enfrentado pelo projeto, e é justamente nesse ponto que a estratégia começa a se desenhar.

A seguir, o quadro Por Dentro da Estratégia recebe Lilian Fraiji, diretora do LABVERDE. A entrevista detalha como esse caminho foi construído na prática, quais articulações jurídicas e institucionais tornaram a iniciativa viável e que tipo de precedentes ela abre para a indústria musical. Um convite para entender, passo a passo, como a floresta saiu do campo conceitual e passou a operar como agente dentro do sistema.

Por Dentro da Estratégia: Nature x LABVERDE, com Lilian Fraiji

Mundo da Música: Quando surgiu a decisão de creditar a Amazônia como artista, qual foi o primeiro obstáculo concreto para tirar essa ideia do campo conceitual e colocá-la para funcionar dentro da indústria fonográfica?

Lilian Fraiji: A decisão de creditar a Amazônia como artista não foi um gesto isolado, mas o desdobramento de uma reflexão construída ao longo de anos no âmbito dos programas do Labverde. Inicialmente, essa ideia se manifestava no campo conceitual e curatorial: artistas frequentemente creditavam espécies não humanas e ecossistemas amazônicos nos textos descritivos de suas obras, reconhecendo que a floresta possui agência no processo criativo.

Entre os múltiplos sujeitos que coexistem na Amazônia, sempre foi uma preocupação central da plataforma Labverde reconhecer a natureza como sujeito, reconhecendo sua história, memória, inteligência e tecnologia próprias. No entanto, embora o reconhecimento jurídico da natureza como sujeito de direito seja um debate relativamente recente, ele representou o principal obstáculo para a materialização dessa iniciativa.

Faltavam mecanismos legais capazes de traduzir esse reconhecimento simbólico em algo operável dentro da indústria fonográfica. Em outras palavras, não existia um caminho jurídico que permitisse transformar a agência reconhecida da Amazônia em geração efetiva de renda. A parceria com a iniciativa Sounds Right foi decisiva justamente por viabilizar, pela primeira vez, instrumentos legais que permitem reconhecer esses direitos e fazê-los funcionar concretamente dentro do sistema de royalties.

Labverde por Laryssa Machada, Amazônia
LABVERDE (Crédito: Laryssa Machada)

Mundo da Música: Na prática, como a Natureza passa a existir juridicamente como artista nas plataformas de streaming, que operam a partir de pessoas físicas e jurídicas humanas?

Lilian Fraiji: Para responder a essa pergunta, é fundamental situar o tema no contexto do movimento global pelos Direitos da Natureza — um debate relativamente recente, mas capaz de provocar transformações profundas nos paradigmas jurídicos contemporâneos. Esse movimento tem como marco institucional a promulgação da Constituição do Equador, em 2008, que reconhece, pela primeira vez, a Natureza como sujeito de direitos.

Inspirada nas cosmovisões ancestrais dos povos indígenas, essa abordagem parte do reconhecimento da interdependência entre todos os seres e sistemas naturais. A Natureza deixa de ser compreendida apenas como um recurso a serviço da humanidade e passa a ser reconhecida por seu valor intrínseco — valor em si mesma. Esse deslocamento rompe com a lógica que a trata exclusivamente como objeto de direitos humanos e inaugura uma nova compreensão jurídica, ética e política da relação entre sociedade e ambiente.

É a partir desse reposicionamento que o Labverde passa a compreender a cultura e as artes como aliadas estratégicas nos processos de preservação ambiental, iniciando uma reflexão sobre a autoria da Natureza nas práticas artísticas desenvolvidas na Amazônia, especialmente no campo sonoro.

Em paralelo, na Colômbia, o coletivo Voz Terra, dedicado à captação sonora da Natureza e dos seres humanos e não humanos que nela habitam, propõe à ONU o reconhecimento da Natureza como coautora de obras sonoras. Esse debate se articula com a atuação da Earth Percent, organização sem fins lucrativos sediada na Inglaterra, voltada à mobilização de recursos da indústria da música para a conservação ambiental.

A partir de seu conhecimento dos sistemas de distribuição musical e de seu acesso às plataformas globais, a Earth Percent lidera a criação de uma iniciativa capaz de traduzir esse debate conceitual em um mecanismo concreto dentro da indústria fonográfica. Assim nasce o Sounds Right, uma articulação internacional que credita a Natureza como artista nas principais plataformas de streaming e viabiliza a geração de royalties destinados à conservação ambiental com negociações diretas junto às plataformas de streaming.

Mundo da Música: Quem representa formalmente a Amazônia nesse projeto em termos de contratos, distribuição e arrecadação de royalties, e como essa estrutura foi construída?

Lilian Fraiji: Assim como a iniciativa foi gerada por uma constelação de atores, quem representa a Amazônia também é uma comunidade de instituições. Dentro desse arranjo, a Sounds Right é responsável por supervisionar a distribuição dos royalties arrecadados. Seu papel é garantir que os recursos retornem às regiões onde os sons foram gravados, por meio do apoio a ONGs e iniciativas locais dedicadas à conservação ambiental e ao fortalecimento das comunidades do território. O Labverde, por sua vez, também faz esse papel junto a porcentagem de royalties que lhe cabe.  

LABVERDE (Crédito: Felipe Bastos)
LABVERDE (Crédito: Felipe Bastos)

Mundo da Música: Sons ambientais não se encaixam facilmente nas categorias tradicionais de obra musical. Como foi feito o enquadramento desses registros dentro das regras de direitos autorais e direitos conexos?

Lilian Fraiji: Tradicionalmente, os sons ambientais são classificados como registros técnicos ou documentais, o que os exclui do sistema de direitos autorais e conexos. O projeto tensiona essa lógica ao reconhecer que esses sons não são apenas registros passivos, mas expressões de sistemas vivos complexos, dotados de agência.

O enquadramento jurídico se dá ao reconhecer essas gravações como obras distribuídas sob um modelo específico, no qual a Natureza é creditada como artista. Assim, dentro das regras existentes da indústria fonográfica, esses registros passam a circular como obras passíveis de arrecadação de royalties, ainda que esse reconhecimento seja restrito ao escopo do projeto e não altere, por ora, a categorização geral da indústria.

Mundo da Música: Quando um EP é ouvido em uma plataforma, qual é o caminho burocrático e financeiro até que esse dinheiro chegue, de fato, aos projetos de conservação e às comunidades envolvidas?

Lilian Fraiji: Quando um EP é reproduzido em uma plataforma de streaming, ele segue o fluxo padrão de arrecadação da indústria fonográfica. As plataformas recolhem os valores gerados pelas reproduções e os direcionam à estrutura de distribuição estabelecida pelo projeto.

A Sounds Right supervisiona esse processo e encaminha os royalties para organizações e iniciativas localizadas nas regiões onde os sons foram gravados. Esses recursos são então aplicados em projetos de conservação ambiental e de apoio às comunidades indígenas e ribeirinhas envolvidas, garantindo que o valor gerado pela circulação desses sons retorne ao território de origem.

Capa do projeto Nature x LABVERDE (Crédito: Divulgação) Amazônia
Capa do projeto Nature x LABVERDE (Crédito: Divulgação)

Mundo da Música: Que mecanismos de governança foram criados para garantir transparência, acompanhamento e uso correto desses recursos ao longo do tempo?

Lilian Fraiji: A governança do projeto está ancorada na estrutura criada pela Sounds Right, que supervisiona a arrecadação e a destinação dos royalties. O princípio central é a rastreabilidade e a transparência, em uma plataforma virtual conseguimos visualizar quanto cada EP produziu de royalties, como esse recurso é distribuído e para quem. 

Na parceria SoundsRight-Labverde tivemos o cuidado para que os recursos oriundos de sonoridades do território Amazônico fossem direcionados a iniciativas e ONGS localizadas e atuantes no território. 

Além disso, a participação de instituições de pesquisa, organizações locais e lideranças comunitárias cria uma rede de acompanhamento e legitimidade, que funciona como um mecanismo de controle ético e político sobre o uso dos recursos, mesmo dentro dos limites impostos pelo sistema de streaming.

Mundo da Música: Do ponto de vista ético e operacional, quais cuidados foram necessários para evitar uma lógica extrativista, mesmo tratando de um lançamento comercial?

Lilian Fraiji: Desde o início, foi uma condição fundamental que os recursos financeiros não fossem capturados por ONGs internacionais distantes do território, mas que reinvestidos diretamente na Amazônia brasileira. Esse compromisso foi determinante para a criação de um acordo entre Labverde e SoundsRight.

Ao mesmo tempo, o projeto reconhece seus limites. Plataformas como o Spotify operam com modelos de distribuição estruturalmente desiguais, que ainda retêm uma parcela significativa da receita gerada. Nesse sentido, o Amazônia Sonora atua de forma crítica dentro de um sistema que ainda carrega práticas extrativistas, buscando tensioná-las e apontar caminhos alternativos baseados na reciprocidade.

Processo de captação de sons da Amazônia (Crédito: Divulgação)
Processo de captação de sons da Amazônia (Crédito: Divulgação)

Mundo da Música: Depois de atravessar todo esse processo, o que vocês diriam que muda, de forma objetiva, quando a indústria musical passa a reconhecer a Natureza como artista?

Lilian Fraiji: O reconhecimento da Natureza como artista provoca uma mudança concreta no debate público e no campo artístico. Ele desloca a percepção da natureza como mero recurso estético e introduz a ideia de que seres não humanos também possuem direitos sobre suas expressões sonoras.

O projeto se orienta pelos sistemas de valores e tradições indígenas da Amazônia, que colocam a reciprocidade no centro das relações: devolver aquilo que é retirado e cuidar dos que sustentam a vida. Em um contexto de intensificação da crise climática, essa mudança deixa de ser apenas simbólica e passa a ser uma necessidade prática.

Os artistas, enquanto embaixadores de ideias, desempenham um papel central nesse processo. Ao afirmar que a Natureza possui seus próprios sons, imagens e ideias, o projeto reposiciona a indústria musical como um possível agente ativo no enfrentamento da emergência climática.

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