Lançada durante a COP-30, em Belém, a iniciativa Nature x LABVERDE reúne uma coletânea de gravações ambientais feitas na Amazônia e propõe um deslocamento pouco comum no mercado musical: tratar a própria natureza como artista oficial nas plataformas de streaming. A obra transforma sons de rios, chuvas, florestas e animais em EPs distribuídos globalmente, com a arrecadação de royalties destinada a projetos de conservação e a comunidades indígenas e ribeirinhas do Baixo Rio Negro.
Transformar a Amazônia em artista, no entanto, não foi um gesto simbólico nem uma ação de comunicação ambiental. A proposta partiu de uma inquietação prática: como fazer com que a floresta deixasse de ser apenas inspiração estética e passasse a existir, de fato, dentro das estruturas formais da indústria fonográfica, com autoria reconhecida, contratos, arrecadação e destino definido para os recursos gerados.

Colocar essa ideia para funcionar exigiu um mergulho nos bastidores do sistema. Plataformas de streaming, modelos de distribuição, regras de direitos autorais e fluxos de royalties foram pensados para operar exclusivamente com pessoas físicas e jurídicas humanas. A ausência de mecanismos legais capazes de traduzir o reconhecimento da natureza em algo operável foi o primeiro grande obstáculo enfrentado pelo projeto, e é justamente nesse ponto que a estratégia começa a se desenhar.
A seguir, o quadro Por Dentro da Estratégia recebe Lilian Fraiji, diretora do LABVERDE. A entrevista detalha como esse caminho foi construído na prática, quais articulações jurídicas e institucionais tornaram a iniciativa viável e que tipo de precedentes ela abre para a indústria musical. Um convite para entender, passo a passo, como a floresta saiu do campo conceitual e passou a operar como agente dentro do sistema.
Por Dentro da Estratégia: Nature x LABVERDE, com Lilian Fraiji
Mundo da Música: Quando surgiu a decisão de creditar a Amazônia como artista, qual foi o primeiro obstáculo concreto para tirar essa ideia do campo conceitual e colocá-la para funcionar dentro da indústria fonográfica?
Lilian Fraiji: A decisão de creditar a Amazônia como artista não foi um gesto isolado, mas o desdobramento de uma reflexão construída ao longo de anos no âmbito dos programas do Labverde. Inicialmente, essa ideia se manifestava no campo conceitual e curatorial: artistas frequentemente creditavam espécies não humanas e ecossistemas amazônicos nos textos descritivos de suas obras, reconhecendo que a floresta possui agência no processo criativo.
Entre os múltiplos sujeitos que coexistem na Amazônia, sempre foi uma preocupação central da plataforma Labverde reconhecer a natureza como sujeito, reconhecendo sua história, memória, inteligência e tecnologia próprias. No entanto, embora o reconhecimento jurídico da natureza como sujeito de direito seja um debate relativamente recente, ele representou o principal obstáculo para a materialização dessa iniciativa.
Faltavam mecanismos legais capazes de traduzir esse reconhecimento simbólico em algo operável dentro da indústria fonográfica. Em outras palavras, não existia um caminho jurídico que permitisse transformar a agência reconhecida da Amazônia em geração efetiva de renda. A parceria com a iniciativa Sounds Right foi decisiva justamente por viabilizar, pela primeira vez, instrumentos legais que permitem reconhecer esses direitos e fazê-los funcionar concretamente dentro do sistema de royalties.

Mundo da Música: Na prática, como a Natureza passa a existir juridicamente como artista nas plataformas de streaming, que operam a partir de pessoas físicas e jurídicas humanas?
Lilian Fraiji: Para responder a essa pergunta, é fundamental situar o tema no contexto do movimento global pelos Direitos da Natureza — um debate relativamente recente, mas capaz de provocar transformações profundas nos paradigmas jurídicos contemporâneos. Esse movimento tem como marco institucional a promulgação da Constituição do Equador, em 2008, que reconhece, pela primeira vez, a Natureza como sujeito de direitos.
Inspirada nas cosmovisões ancestrais dos povos indígenas, essa abordagem parte do reconhecimento da interdependência entre todos os seres e sistemas naturais. A Natureza deixa de ser compreendida apenas como um recurso a serviço da humanidade e passa a ser reconhecida por seu valor intrínseco — valor em si mesma. Esse deslocamento rompe com a lógica que a trata exclusivamente como objeto de direitos humanos e inaugura uma nova compreensão jurídica, ética e política da relação entre sociedade e ambiente.
É a partir desse reposicionamento que o Labverde passa a compreender a cultura e as artes como aliadas estratégicas nos processos de preservação ambiental, iniciando uma reflexão sobre a autoria da Natureza nas práticas artísticas desenvolvidas na Amazônia, especialmente no campo sonoro.
Em paralelo, na Colômbia, o coletivo Voz Terra, dedicado à captação sonora da Natureza e dos seres humanos e não humanos que nela habitam, propõe à ONU o reconhecimento da Natureza como coautora de obras sonoras. Esse debate se articula com a atuação da Earth Percent, organização sem fins lucrativos sediada na Inglaterra, voltada à mobilização de recursos da indústria da música para a conservação ambiental.
A partir de seu conhecimento dos sistemas de distribuição musical e de seu acesso às plataformas globais, a Earth Percent lidera a criação de uma iniciativa capaz de traduzir esse debate conceitual em um mecanismo concreto dentro da indústria fonográfica. Assim nasce o Sounds Right, uma articulação internacional que credita a Natureza como artista nas principais plataformas de streaming e viabiliza a geração de royalties destinados à conservação ambiental com negociações diretas junto às plataformas de streaming.
Mundo da Música: Quem representa formalmente a Amazônia nesse projeto em termos de contratos, distribuição e arrecadação de royalties, e como essa estrutura foi construída?
Lilian Fraiji: Assim como a iniciativa foi gerada por uma constelação de atores, quem representa a Amazônia também é uma comunidade de instituições. Dentro desse arranjo, a Sounds Right é responsável por supervisionar a distribuição dos royalties arrecadados. Seu papel é garantir que os recursos retornem às regiões onde os sons foram gravados, por meio do apoio a ONGs e iniciativas locais dedicadas à conservação ambiental e ao fortalecimento das comunidades do território. O Labverde, por sua vez, também faz esse papel junto a porcentagem de royalties que lhe cabe.

Mundo da Música: Sons ambientais não se encaixam facilmente nas categorias tradicionais de obra musical. Como foi feito o enquadramento desses registros dentro das regras de direitos autorais e direitos conexos?
Lilian Fraiji: Tradicionalmente, os sons ambientais são classificados como registros técnicos ou documentais, o que os exclui do sistema de direitos autorais e conexos. O projeto tensiona essa lógica ao reconhecer que esses sons não são apenas registros passivos, mas expressões de sistemas vivos complexos, dotados de agência.
O enquadramento jurídico se dá ao reconhecer essas gravações como obras distribuídas sob um modelo específico, no qual a Natureza é creditada como artista. Assim, dentro das regras existentes da indústria fonográfica, esses registros passam a circular como obras passíveis de arrecadação de royalties, ainda que esse reconhecimento seja restrito ao escopo do projeto e não altere, por ora, a categorização geral da indústria.
Mundo da Música: Quando um EP é ouvido em uma plataforma, qual é o caminho burocrático e financeiro até que esse dinheiro chegue, de fato, aos projetos de conservação e às comunidades envolvidas?
Lilian Fraiji: Quando um EP é reproduzido em uma plataforma de streaming, ele segue o fluxo padrão de arrecadação da indústria fonográfica. As plataformas recolhem os valores gerados pelas reproduções e os direcionam à estrutura de distribuição estabelecida pelo projeto.
A Sounds Right supervisiona esse processo e encaminha os royalties para organizações e iniciativas localizadas nas regiões onde os sons foram gravados. Esses recursos são então aplicados em projetos de conservação ambiental e de apoio às comunidades indígenas e ribeirinhas envolvidas, garantindo que o valor gerado pela circulação desses sons retorne ao território de origem.

Mundo da Música: Que mecanismos de governança foram criados para garantir transparência, acompanhamento e uso correto desses recursos ao longo do tempo?
Lilian Fraiji: A governança do projeto está ancorada na estrutura criada pela Sounds Right, que supervisiona a arrecadação e a destinação dos royalties. O princípio central é a rastreabilidade e a transparência, em uma plataforma virtual conseguimos visualizar quanto cada EP produziu de royalties, como esse recurso é distribuído e para quem.
Na parceria SoundsRight-Labverde tivemos o cuidado para que os recursos oriundos de sonoridades do território Amazônico fossem direcionados a iniciativas e ONGS localizadas e atuantes no território.
Além disso, a participação de instituições de pesquisa, organizações locais e lideranças comunitárias cria uma rede de acompanhamento e legitimidade, que funciona como um mecanismo de controle ético e político sobre o uso dos recursos, mesmo dentro dos limites impostos pelo sistema de streaming.
Mundo da Música: Do ponto de vista ético e operacional, quais cuidados foram necessários para evitar uma lógica extrativista, mesmo tratando de um lançamento comercial?
Lilian Fraiji: Desde o início, foi uma condição fundamental que os recursos financeiros não fossem capturados por ONGs internacionais distantes do território, mas que reinvestidos diretamente na Amazônia brasileira. Esse compromisso foi determinante para a criação de um acordo entre Labverde e SoundsRight.
Ao mesmo tempo, o projeto reconhece seus limites. Plataformas como o Spotify operam com modelos de distribuição estruturalmente desiguais, que ainda retêm uma parcela significativa da receita gerada. Nesse sentido, o Amazônia Sonora atua de forma crítica dentro de um sistema que ainda carrega práticas extrativistas, buscando tensioná-las e apontar caminhos alternativos baseados na reciprocidade.

Mundo da Música: Depois de atravessar todo esse processo, o que vocês diriam que muda, de forma objetiva, quando a indústria musical passa a reconhecer a Natureza como artista?
Lilian Fraiji: O reconhecimento da Natureza como artista provoca uma mudança concreta no debate público e no campo artístico. Ele desloca a percepção da natureza como mero recurso estético e introduz a ideia de que seres não humanos também possuem direitos sobre suas expressões sonoras.
O projeto se orienta pelos sistemas de valores e tradições indígenas da Amazônia, que colocam a reciprocidade no centro das relações: devolver aquilo que é retirado e cuidar dos que sustentam a vida. Em um contexto de intensificação da crise climática, essa mudança deixa de ser apenas simbólica e passa a ser uma necessidade prática.
Os artistas, enquanto embaixadores de ideias, desempenham um papel central nesse processo. Ao afirmar que a Natureza possui seus próprios sons, imagens e ideias, o projeto reposiciona a indústria musical como um possível agente ativo no enfrentamento da emergência climática.
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