Informações desencontradas sobre legado de Waltel Branco jogam luz sobre as lacunas no crédito aos arranjadores

A discussão sobre arranjadores e seus créditos na música reacendeu após o caso de Waltel Branco. Como esse processo funciona e quais os impactos no setor?
Foto de Nathália Pandeló
Nathália Pandeló
Waltel Branco (Crédito: Reprodução)
Waltel Branco (Crédito: Reprodução)

Uma recente polêmica envolvendo o nome e a obra de Waltel Branco reacendeu um debate sobre a atribuição de créditos na música. O maestro, conhecido por seu trabalho como arranjador e colaborador de grandes produções, teve seu nome ligado à autoria do tema de “A Pantera Cor-de-Rosa” (The Pink Panther Theme), historicamente creditado a Henry Mancini. Enquanto algumas fontes apontam que ele teria participado da equipe de arranjo da trilha, outras destacam que não há registros que confirmem sua atuação na produção da música para o filme. O caso gerou discussões sobre o papel dos arranjadores na indústria e a forma como suas contribuições são reconhecidas nos registros de obras e fonogramas.

O caso gerou discussões sobre como a indústria registra essas contribuições e como erros ou omissões podem distorcer o reconhecimento de artistas. No Brasil, o registro formal de uma música é essencial para garantir que cada profissional envolvido seja corretamente creditado e remunerado. Porém, os arranjadores nem sempre são contemplados nos registros de fonogramas, o que levanta dúvidas sobre a forma como o mercado trata essas contribuições.

Começo de conversa: entendendo a confusão

A polêmica sobre Waltel Branco começou quando uma publicação viral nas redes sociais afirmou que ele teria sido o compositor do tema de “A Pantera Cor-de-Rosa. O governador do Paraná, Ratinho Junior, compartilhou essa informação em seu perfil oficial, exaltando o maestro como o autor da trilha. O jornalista Felippe Aníbal, autor da biografia “Waltel Branco: o maestro oculto”, corrigiu a informação, explicando que se tratava de uma lenda urbana disseminada nas últimas décadas. Segundo Aníbal, Waltel não estava nos Estados Unidos na época da composição e nunca reivindicou a autoria da obra. Seu comentário, no entanto, foi ocultado da postagem do governador, o que gerou críticas sobre a propagação da informação errada e a suposta tentativa de censura.

O caso ganhou novos desdobramentos quando entidades ligadas à música, como o Observatório da Cultura do Brasil, Fonoteca da Música Paranaense e o Museu Independente, defenderam que Waltel Branco teve, sim, uma relação com a obra de Mancini, ainda que não como compositor. Segundo esses grupos, Waltel trabalhou como arranjador e transcritor de partituras dentro da equipe de Mancini e gravou um disco de versões em samba das músicas do compositor norte-americano, incluindo “The Pink Panther Theme”. Além disso, apontaram que a narrativa de que Waltel jamais teria colaborado com Mancini desconsidera registros de sua trajetória e entrevistas em que ele próprio relatava ter trabalhado com o músico.

A discussão não se limitou à autoria da obra. Para alguns, a forma como a história foi conduzida reflete um problema maior na indústria musical: o apagamento do trabalho de arranjadores e colaboradores técnicos que contribuem para a identidade sonora de uma composição, mas muitas vezes ficam à margem dos créditos formais. Para outros, a questão principal foi a disseminação de uma informação equivocada, já que a trilha de “A Pantera Cor-de-Rosa” sempre teve Mancini como único autor registrado e reconhecido. O episódio acabou reacendendo um debate mais amplo sobre a atribuição de créditos na música e os critérios que determinam como diferentes profissionais são reconhecidos no mercado.

Obra e fonograma: como funcionam os registros?

Na estrutura atual da indústria, o registro de uma obra e de um fonograma são processos distintos. Enquanto a obra protege a composição em si – melodia, harmonia e letra –, o fonograma se refere à gravação dessa obra, ou seja, à fixação da interpretação em um meio físico ou digital.

“O registro de uma obra garante a proteção da criação intelectual original, como uma composição musical, sua letra ou partitura. Por outro lado, o registro de um fonograma está relacionado à gravação dessa obra, ou seja, à fixação da interpretação musical em um meio físico ou digital, como um CD ou um arquivo de áudio. O processo de cadastro de um fonograma formaliza a gravação, registrando informações sobre a obra, os intérpretes, os produtores e demais envolvidos na produção. Esse procedimento é essencial para assegurar o respeito aos direitos autorais, garantindo que criadores e intérpretes recebam o devido reconhecimento e remuneração pelo uso de suas produções. Além disso, o registro contribui para evitar conflitos sobre autoria e propriedade da gravação, protegendo os direitos de todos os envolvidos no processo”, explica Ney Tude, consultor do Departamento Conexo da União Brasileira de Compositores (UBC).

No cadastro de um fonograma, são registradas informações sobre intérpretes, produtores e demais profissionais que participaram da gravação. Esse processo assegura o respeito aos direitos autorais e evita disputas sobre propriedade da gravação, garantindo que todos os envolvidos sejam reconhecidos e remunerados corretamente.

O arranjador no registro de fonogramas

Waltel Branco - (Crédito: Cido Marques - Fundação Cultural de Curitiba)
Waltel Branco – (Crédito: Cido Marques – Fundação Cultural de Curitiba)

Embora seja peça fundamental na sonoridade de uma música, o arranjador nem sempre recebe o devido destaque no registro de fonogramas. Tradicionalmente, esse tipo de cadastro prioriza compositores e intérpretes, deixando o papel dos arranjadores menos evidente.

“Com as transformações no mercado musical, especialmente com o crescimento da influência de produtores e beatmakers, surge um debate cada vez mais forte sobre a necessidade de formalizar esse reconhecimento. Em alguns países e por meio de determinadas organizações, já se discute a inclusão de arranjadores e produtores como co-autores ou co-proprietários dos direitos autorais, refletindo sua relevância no cenário musical atual”, complementa Ney Tude.

Apesar da ausência de um padrão universal para esse tipo de valorização, a tendência é que, conforme o mercado evolui e as colaborações se tornam mais complexas, haja uma maior formalização do papel de arranjadores e produtores. Segundo Ney, o modelo atual permite que arranjadores sejam adicionados como músicos acompanhantes, desde que haja um acordo formal entre gravadora e artista no momento da gravação.

Como o mercado orienta artistas e produtores?

Do ponto de vista do registro de obras, o processo envolve informações detalhadas sobre autoria e edição. O cadastro pode ser feito online, seguindo critérios específicos para garantir que todos os envolvidos sejam corretamente identificados.

“As informações obrigatórias são: título da obra, nomes dos autores/compositores e seus respectivos percentuais (fechando um total de 100%). No caso de um ou mais autores terem editado, é preciso informar suas editoras, os percentuais entre o autor e a editora estipulado em contrato e a data em que foi assinado. É solicitado também o envio de áudio e letra da obra e o contrato de edição no caso de obra editada”, explica Aline Leivas, gerente do departamento de Documentação da UBC. 

Aline reforça que, no caso de versões e adaptações, a obra original deve ser informada e a autorização formalizada por contrato. Essa exigência também se aplica a samples e outros usos de obras já existentes. 

“Esse tipo de cadastro só pode ser feito dentro dos mesmos critérios, com os documentos de autorização de todas as partes envolvidas”, ressalta.

A orientação da UBC é que artistas e produtores busquem informações sobre a autoria das obras antes de registrá-las. Isso evita problemas jurídicos e garante que os criadores originais sejam devidamente reconhecidos. 

“O cadastro de uma obra derivada sem créditos à obra original e seus criadores é uma violação dos direitos autorais que pode resultar em processos, indenizações, ter vídeos derrubados no YouTube e outras plataformas, bloqueio de acessos das ferramentas da sociedade para o titular e até mesmo expulsão em casos extremos”, alerta Aline.

A relevância dos registros para a remuneração dos artistas

A correta atribuição de créditos não se limita ao reconhecimento profissional. Erros nesse processo podem impactar diretamente a arrecadação de direitos autorais e conexos, comprometendo a remuneração de quem participou da criação musical.

Para evitar esse tipo de problema, Ney Tude destaca que todos os participantes de um fonograma devem se associar a uma entidade de gestão coletiva. “Para garantir uma perfeita identificação, todos os participantes devem se associar a alguma entidade de gestão de direitos autorais e conexos, como a UBC, e a gravadora deve gerar um código ISRC para enviar junto com os metadados do fonograma para registro imediato na sociedade”, explica. Esse código funciona como um identificador único para cada gravação e assegura que os créditos sejam corretamente distribuídos.

A importância desse cuidado se estende a todas as etapas da produção musical, especialmente em gêneros como o trap e o funk, onde produtores e beatmakers têm um papel essencial. 

“A orientação da UBC é sempre para que os criadores busquem através do nosso site, do nosso Portal ou em contato direto conosco, as informações relacionadas à autoria das obras que estão sendo sampleadas, modificadas e utilizadas de qualquer forma em uma nova criação”, reforça Aline Leivas.

O que o caso Waltel Branco revela sobre o mercado?

A discussão em torno de Waltel Branco expôs um problema recorrente na indústria: a falta de clareza sobre o papel de diferentes profissionais na construção de uma obra musical. Embora o maestro nunca tenha reivindicado a autoria do tema de “A Pantera Cor-de-Rosa”, a circulação da informação errada distorceu sua contribuição real, criando confusão sobre sua trajetória.

Esse caso serve de alerta para músicos, produtores e arranjadores sobre a necessidade de formalizar suas participações de maneira clara e documentada. Em um mercado cada vez mais digitalizado e dependente de metadados, o registro correto ajuda a preservar a obra dos artistas e a garantir que todos os envolvidos sejam reconhecidos e remunerados adequadamente.

Independentemente de “A Pantera Cor-de-Rosa”, Waltel Branco deixou um legado enorme na música brasileira. Multi-instrumentista, arranjador e compositor, ele trabalhou com alguns dos nomes mais importantes da MPB, do jazz e da música instrumental. Foi diretor musical da TV Globo por mais de 30 anos, criando arranjos para trilhas sonoras de novelas e programas de grande audiência. No cenário fonográfico, colaborou com artistas como Tom Jobim, João Gilberto, Baden Powell, Roberto Carlos, Elis Regina e Tim Maia, além de ter atuado como orquestrador e arranjador em gravações marcantes. Também participou da cena do jazz latino e da bossa nova, tendo trabalhado ao lado de Quincy Jones e Hermeto Pascoal. Seu trabalho transita por diversos estilos, do samba ao experimentalismo, consolidando sua importância como um dos grandes nomes da música brasileira. Quanto a isso, não pode haver qualquer dúvida ou discussão.

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