Trago nesse artigo um resumão da audiência pública que aconteceu no dia 2 de setembro, na Câmara dos Deputados, dentro da Comissão Especial que está analisando o Projeto de Lei 2338 de 2023, que trata do desenvolvimento e uso ético da inteligência artificial no Brasil.
E eu já aviso: duas horas e meia de audiência nos renderam uma chuva de absurdos ditos por representantes de empresas e até por acadêmicos que parecem mais preocupados em defender os interesses das big techs do que em proteger a nossa cultura e os nossos autores.
Mas vamos por partes, porque cada absurdo aqui precisa ser contado com calma.
A fala da Meta
A primeira que brilhou em incoerência foi, sem surpresas, a representante da Meta, a Margarete Kang.
Segundo ela, os modelos de inteligência artificial não armazenam obras, não fazem cópias, apenas aprendem “padrões estatísticos”. É quase fofinho, parece até uma criança inocente brincando de estatística, né?
Mas a realidade é outra: pra “aprender padrões”, esses modelos precisam sim copiar, tokenizar, processar e armazenar obras protegidas. É cópia, ainda que temporária. E a Lei de Direitos Autorais já diz com todas as letras: armazenamento temporário também é reprodução.
Ela ainda teve coragem de dizer que nenhuma obra individual tem valor intrínseco no treinamento, que não faria diferença tirar ou colocar uma obra. Esse discurso serve pra justificar o quê? Que os autores não merecem remuneração.
Só que a Folha de São Paulo já desmontou essa narrativa na prática, numa ação contra a OpenAI, provando que matérias específicas, inclusive atrás de paywall, foram usadas e reproduzidas.
Mas a Meta não parou por aí. Trouxe a velha ladainha do “opt-out”. Ou seja, segundo eles, a responsabilidade não é de quem usa sem autorização, mas do autor que tem que separar um tempo da sua vida pra ficar entrando no site e dizendo “não use minha obra”.
A nossa lei diz que o uso só pode acontecer com autorização prévia e expressa do autor, mas a Meta quer transformar isso em “tudo pode, a não ser que o autor consiga tecnicamente bloquear”.
Queridos, vocês não são mais uma startup. Tá na hora de sair debaixo do manto do Safe Harbor e trabalhar como uma empresa bilionária, né?
E aí vem o discurso final: se o Brasil não flexibilizar, se não liberar esse uso massivo e não remunerado de obras, vamos ficar isolados tecnologicamente, atrasados em relação a Estados Unidos, Japão, Austrália.
Esse argumento é nosso velho conhecido: sempre que alguém quer passar por cima de direitos, eles dizem que é pela “inovação”. Mas inovação construída em cima de exploração?
A fala do professor Juliano Maranhão
Bom, agora vamos ao professor Juliano Maranhão, da USP.
Ele defendeu basicamente a mesma cartilha da Meta, mas usando linguagem acadêmica. Disse que não há violação de direito autoral no treinamento de IA, porque não haveria reprodução de expressão individual, apenas “vetores matemáticos”.
Ou seja, transformaram obras literárias, músicas, pinturas e reportagens em números inofensivos. Seria poético, se não fosse fraude jurídica, heim, professor?
Ele também afirmou que vincular a remuneração ao direito autoral inviabiliza a inovação. Que o Brasil deveria permitir o uso irrestrito das obras no treinamento e pensar só em uma remuneração futura, coletiva, desvinculada do direito autoral.
Em outras palavras: tiremos o direito autoral do caminho, deixemos as empresas usarem tudo o que quiserem, e talvez, um dia, elas repassem uma migalha em algum fundo coletivo.
Juliano chegou a usar o termo “colonialismo digital” para dizer que, se cobrarmos autorização, as empresas estrangeiras vão excluir conteúdo nacional e só treinar com obras estrangeiras.
Veja a perversidade: ele reconhece o risco, mas usa isso como justificativa para liberar geral. É como dizer: “eles já vão nos colonizar, então vamos dar tudo de graça antes, pra pelo menos sermos colonizados com um belo sorriso no rosto”.
Esse raciocínio é um absurdo, né, gente? Primeiro porque enfraquece a posição negociadora do Brasil. Segundo porque ignora que, sem conteúdo humano, as próprias IAs vão colapsar, vários estudos já apontam isso. E terceiro porque tenta vender como inevitável uma escolha que é, na verdade, política e jurídica.
O Brasil pode sim proteger sua cultura e ainda assim inovar. Não precisamos entregar nosso patrimônio cultural de bandeja.
E reparem como Meta e Maranhão falaram a mesma língua: treinamento não é reprodução; obras individuais não têm valor; remuneração autoral é inviável; o Brasil precisa flexibilizar para não ficar pra trás. Parece até que eles se comunicaram antes de aparecerem nessa audiência e acharam que a gente não ia perceber.
Mas percebemos, senhores.
Dante Cid e o setor de livros
Indo adiante, Dante Cid, representante do setor de livros, trouxe um argumento que, embora mais sutil, também abre brechas perigosas.
Disse que o artigo 63 do projeto, que trata da exceção de mineração de dados, é redundante e deveria ser removido para evitar insegurança jurídica.
O problema é que ele não reforçou a necessidade de autorização prévia e expressa. Ou seja, ao simplesmente pedir a retirada do artigo, sem amarrar a defesa clara dos autores, a gente deixa uma margem para interpretações que favorecem quem quer usar obras sem licença.
Os contrapontos importantes
Respiremos…
Felizmente, houve contrapontos fortes.
André Fernandes, do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife, foi categórico: estamos diante de uma exploração massiva de obras protegidas, sem remuneração, sem autorização e em descumprimento da lei que já existe.
Ele chamou isso de “beneficiar-se da própria torpeza”: as empresas cometem a infração e depois pedem que a lei mude para legalizar a infração. Tipo… você cria o problema pra depois dar a solução para o problema. Muito pertinente essa observação.
Dalton Morato, da Associação Brasileira de Direitos Reprográficos, trouxe um exemplo prático: mostrou como a Folha de São Paulo comprovou que a OpenAI estava reproduzindo resumos de matérias protegidas por assinatura, inclusive atrás de paywall.
Ou seja: o usuário deixa de assinar o jornal porque pode obter o conteúdo de graça pelo chatbot. É a prova de que o discurso da Meta, de que “não há reprodução nem valor individual”, é totalmente mentiroso.
Conclusão
Enfim, os maiores absurdos vieram da Meta e do professor Maranhão ao negarem a reprodução de obras, transferirem a responsabilidade para os autores via opt-out, desvalorizarem o papel da obra individual, proporem um modelo de remuneração coletiva futuro e incerto e colocarem a inovação acima da Constituição, da Convenção de Berna e da nossa Lei de Direitos Autorais. Quanto à Meta, nada me surpreende. Mas do professor, eu não esperava.
Se esse tipo de discurso prevalecer, o direito autoral no Brasil passará por uma fase muito complicada. As big techs vão usar nossas obras pra criar conteúdo sintético que vai concorrendo deslealmente com a produção humana. Esse é o futuro que está se desenhando.
E precisamos ser claros: o treinamento de IA generativa com obras protegidas é, sim, reprodução; exige, sim, autorização prévia e expressa; e deve, sim, gerar remuneração.
Tudo fora disso é argumento das empresas que querem legitimar a exploração.
Sempre que você ouvir alguém dizendo que “IA só aprende padrões” ou que “obra individual não tem valor”, lembre-se disso: é o discurso de quem lucra bilhões enquanto esmaga a base da criação cultural.
E cabe a nós, criadores, juristas, legisladores, representantes de classe, influenciadores e cidadãos, nos posicionarmos e ensinarmos que isso é ilegal.
A audiência completa está no canal da Câmara dos Deputados, nesse link.