No mercado musical, o ISRC (International Standard Recording Code) é um tema que vem dividindo opiniões. Esse código único, que funciona como um CPF das gravações, é fundamental para que as músicas e os videoclipes sejam identificados em execuções públicas e, assim, gerem receita. Porém, entre os artistas independentes, sua relevância e resultado vêm sendo questionados, especialmente no contexto de baixa remuneração no streaming.
O produtor musical Lisciel Franco reacendeu a discussão em um vídeo no YouTube que vem gerando muitas respostas e repercussões desde o início de janeiro. Nele, sugeriu que artistas que não recebem valores significativos com o ISRC poderiam considerar não aderir ao sistema.
A publicação do vídeo se mostrou uma oportunidade para trazer à tona o debate em torno de trâmites burocráticos da produção e distribuição fonográfica. A discussão alerta tanto para as lacunas de renda que a era do streaming deixou na conta bancária dos artistas, bem como para um mercado ainda carente de profissionalização e padronização de processos.
O que é o ISRC e como ele funciona?
O ISRC é um código internacional que identifica um fonograma ou videoclipe de forma única. Ele é essencial para que órgãos de arrecadação, como o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), rastreiem execuções públicas de músicas e distribuam os valores arrecadados para os titulares de direitos autorais. Isso inclui execuções em rádios, shows, bares, plataformas de streaming e até novelas.
No Brasil, o Ecad recolhe valores sobre execuções públicas de qualquer música, independentemente de ela ter ou não o ISRC. Mas, sem o código, o dinheiro fica retido até que o titular se manifeste e registre a obra. Esse ponto é importante para artistas que optam por não fazer o ISRC: mesmo que sua música toque em uma rádio, ela pode gerar receita, mas o valor não será automaticamente liberado.
Segundo Bruna Campos, representante da União Brasileira de Compositores (UBC) no Mato Grosso do Sul, essa retenção pode causar sérios problemas para os artistas. Em um artigo no site da UBC, ela pontuou sobre possíveis restrições que os próprios artistas podem enfrentar após a distribuição digital de uma faixa:
“É importante entender que deixar de fazer o ISRC não mudará nada na sua vida. Além de ser uma atitude ilegal, não é o ISRC que está restringindo seus áudios ou fazendo com que sejam reivindicados ou bloqueados. O que realmente impede o uso dos seus áudios é o contrato que você assinou com a sua agregadora”, explica.
Uma nova realidade
Com a música ficando quase que totalmente digital, o volume de lançamentos também atingiu números nunca antes vistos. Não é à toa que o ex-economista chefe do Spotify, Will Page, identificou que em 2024, foram lançadas mais músicas em um dia do que em todo o ano de 1989.
Um artista nativo da era digital, o músico e produtor musical Felipe Parra vê essa realidade de perto e garante: com os artistas tendo de aprender múltiplas profissões ao mesmo tempo para gerirem a própria carreira, existem lacunas naturais desse processo.
“O acesso mais amplo às possibilidades de gravação e distribuição da música foram positivos em diversos aspectos, mas também trouxeram algumas ressalvas. Antes para você lançar um trabalho era porque você já tinha uma mínima estrutura profissionalizada, coisa que não acontece mais. Como hoje, na maioria dos casos, o artista é responsável por gerir toda sua carreira, é bem comum ver alguns iniciantes sem ter a menor ideia do que é necessário para colocar um trabalho na rua”.
A crítica ao sistema de distribuição
Considerando essa realidade, Lisciel Franco argumenta que o ISRC não traz benefícios reais para a maioria dos artistas independentes. Para ele, o maior problema é a desigualdade na distribuição dos valores.
“Eu recebo uns R$ 200 ou R$ 300 por ano com ISRC. Gravo 40 bandas por ano há 30 anos. Não era para eu já estar aposentado com esse dinheiro?”, questiona.
O que fica de fora desse argumento, no entanto, é que a distribuição das arrecadações não é uniforme – ganha mais quem toca mais. O Ecad, ao divulgar seus relatórios anuais, costuma apresentar dados que indicam a concentração de valores nas mãos de artistas com maior execução em rádios, TVs e shows, enquanto músicos independentes e aqueles com menor alcance recebem frações menores.
Rádios, novelas e a esperança no ISRC
Um dos argumentos mais comuns para fazer o ISRC é a possibilidade de a música ser usada em rádios, novelas ou filmes. Isso, em tese, poderia gerar uma receita considerável – variando de caso a caso, a depender dos acordos de licenciamento.
Independente de uma faixa entrar ou não para a trilha de uma série de TV ou comercial, no ambiente digital, o ISRC é essencial para que as canções sejam identificadas nas plataformas de streaming e gerem receita.
Os artistas que querem fugir das demandas das principais plataformas podem buscar alternativas como o Bandcamp, onde podem vender música diretamente aos fãs, ou utilizem as redes sociais para alcançar o público sem intermediários.
O impacto real na vida dos artistas
Para Felipe Parra, o maior desafio está na falta de conhecimento sobre o mercado. Ele afirma:
“Muitos artistas que conheço, que já tem trabalhos relevantes, não têm a menor ideia do que é ISRC, direito autoral, direito conexo, edição, distribuição e toda essa cadeia que envolve lançar música. Obviamente que esse não é o aspecto mais sedutor de uma carreira artística, mas é extremamente importante.”
E acrescenta:
“Eu tento fazer a minha parte como produtor musical e artista de difundir esses conceitos e acho que outros profissionais da área deveriam fazer o mesmo. Ter mais e mais profissionais capacitados com ciência de todas as etapas que envolvem um lançamento é do interesse de todos.”
Ele acredita que o foco deve estar na construção de um público engajado.
“Acho que a principal meta para monetizar sua arte é a mais básica de todas: criar público. Sei que parece óbvio mas ter público não é necessariamente ter números. Ou melhor, ter números não é necessariamente ter público. Vejo artistas com números bem grandes que não conseguem levar as pessoas pro seu show”, explica.
Entre o digital e o físico
Enquanto o debate sobre o ISRC continua, muitos artistas têm buscado alternativas para diversificar sua receita. Produtos físicos estão voltando a ganhar espaço e, segundo dados da CISAC, a produção de discos de vinil aumentou novamente em 2024.
Para Bruna, investir em merchandise e shows autorais pode ser uma forma de complementar a renda. É o caso dos bolachões.
“Trata-se de um produto de colecionador, que pode ser direcionado aos fãs mais apaixonados e vendido com um ticket mais alto. Use a criatividade e coloque a cabeça para pensar”, recomenda.
Perspectivas e reflexões sobre o ISRC
O ISRC é uma ferramenta importante para garantir direitos e facilitar a remuneração no mercado musical. Sua eficácia, no entanto, varia conforme a realidade de cada artista. Para alguns, ele é indispensável; para outros, pode parecer um esforço que não compensa.
Apesar das críticas ao sistema, abrir mão do ISRC não resolve os problemas estruturais da indústria musical. Pelo contrário, pode empurrar mais artistas para a informalidade, aumentando a insegurança em um mercado já cheio de desafios. Sem registros adequados, os fonogramas ficam desprotegidos e os artistas perdem oportunidades de gerar receita, seja em execuções públicas, seja na defesa de seus direitos autorais.
Questionar e reformular sistemas é necessário, mas isso deve vir acompanhado de propostas que garantam mais equidade e acesso às ferramentas por todos os artistas. Enquanto isso não acontece, entender e utilizar as estruturas existentes pode ser a diferença entre consolidar uma carreira musical e enfrentar barreiras ainda maiores para sobreviver na música.