O avanço das ferramentas de inteligência artificial abriu novas possibilidades criativas, mas também um campo fértil para práticas ilegais envolvendo direitos autorais. Nos últimos dois anos, ganhou força um mercado dedicado a “lavar” músicas geradas por IA, um processo que transforma faixas sintéticas em obras aparentemente humanas, aptas a registro e monetização.
Essa “humanização” pode incluir edição de stems para quebrar a precisão robótica, adição de ruídos e silêncios, mudança de bitrates, masterização analógica e até regravação com músicos contratados. Técnicas mais avançadas, como o model poisoning, inserem ruídos inaudíveis que confundem os detectores automatizados.
O exemplo mais conhecido é a Songbay, que oferece remixagem, remasterização e regravação com músicos reais para transformar criações de IA em obras com aparência humana, elegíveis para registro e distribuição. Há ainda empresas que anunciam abertamente: “Envie sua música de IA, nós a humanizamos para você registrar os direitos autorais”.
No formato comercial, esses serviços costumam oferecer desde pacotes simples, que ajustam arquivos para alterar sua “impressão digital” e dificultar a identificação como obra de IA, até versões mais completas que recriam toda a faixa em estúdio com músicos e vocalistas. Os preços começam em torno de US$ 150 e podem incluir entrega já pronta para registro e distribuição digital. Além da cobrança pelo serviço, as empresas também lucram com taxas de intermediação, distribuição e até participação nos ganhos futuros da música.
Monetização invisível que afeta os direitos autorais
A escala desses serviços não é de se ignorar. O músico e pesquisador Benn Jordan identificou que 98% das 560 músicas mais populares e destacadas na plataforma Suno já estavam monetizadas em serviços de streaming, muitas vezes usando perfis falsos. Um desses casos ultrapassou 688 mil reproduções no Spotify, gerando cerca de US$ 2 mil. Trata-se de um dinheiro que, em condições normais, iria para artistas humanos.
Outros exemplos reforçam a dimensão do fenômeno. A banda gerada por IA The Velvet Sundown chegou a 1,1 milhão de ouvintes mensais antes de ter parte de seu catálogo removido pelo Spotify. Já um esquema investigado no caso Michael Smith teria movimentado US$ 10 milhões em royalties, combinando músicas sintéticas com redes de bots para inflar reproduções, nas já conhecidas “fazendas” de streams.
Plataformas e brechas

O aumento no volume de lançamentos agrava a situação. De 2023 para 2024, o número de artistas no Spotify subiu de 10 milhões para 12 milhões, enquanto dados da Luminate indicam que cerca de 99 mil novas faixas são publicadas por dia nos serviços de streaming. A Deezer, por sua vez, reporta receber 20 mil músicas geradas por IA diariamente, com 70% desse consumo associado a atividades fraudulentas.
Embora as tecnologias de detecção estejam avançadas (como o sistema AI Radar da Believe, que identifica até 97% das músicas de IA, mesmo após edições, e ferramentas exclusivas da Deezer), a aplicação é irregular. Plataformas e distribuidoras muitas vezes aceitam arquivos sem verificar autoria, e as organizações de gestão coletiva ainda dependem de metadados autodeclarados, hoje facilmente falsificados.
Falhas na fiscalização
Essa falta de rastreabilidade torna a detecção um problema jurídico, não apenas técnico. Sem registro de logs nos servidores ou colaboração dos desenvolvedores de IA, só uma ordem judicial pode confirmar a origem de uma música. E como a maioria dos distribuidores não exige prova de procedência, muitos desses rastros se perdem antes que qualquer investigação sobre os direitos autorais comece.
A consequência é a diluição dos fundos de royalties, a distorção de algoritmos de recomendação e a perda de confiança de artistas e ouvintes. Como a remuneração é proporcional ao número total de reproduções, cada faixa artificial bem-sucedida reduz a parcela que caberia aos músicos reais.
Possíveis soluções
Entre as propostas discutidas no setor estão a obrigatoriedade de marca-d’água em toda música criada com inteligência artificial, retenção de registros e uma regra simples: só receberia royalties quem apresentasse um registro claro de origem da obra. A ideia é que, sem essa comprovação, a faixa não possa ser remunerada, o que ajudaria a reduzir as fraudes e a preservar os recursos destinados a artistas reais.
Essas medidas, no entanto, só funcionarão se houver aplicação consistente e integração entre plataformas, distribuidoras, sociedades de gestão e órgãos reguladores. A batalha pela proteção dos direitos autorais na era da IA é, acima de tudo, uma corrida contra um mercado que já encontrou formas lucrativas de explorar as brechas do sistema.
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