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Entrevista: Thabata Lima Arruda aborda invisibilidade das mulheres negras nos festivais em pesquisa pioneira

Pesquisadora Thabata Lima Arruda revela dados inéditos sobre desigualdade de gênero e raça nos palcos brasileiros e discute os desafios para promover a inclusão no mercado da música.
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Nathália Pandeló
Thabata Lima Arruda
Thabata Lima Arruda

Ao longo de quase uma década, a pesquisadora Thabata Lima Arruda tem se dedicado a mapear a presença de mulheres e homens negros nos festivais de música brasileiros, revelando um cenário de exclusão que persiste. Com o levantamento “Mulheres nos Palcos: diversidade de gênero e raça nos festivais brasileiros de 2016 a 2023” e o artigo “Mulheres Pretas nos Palcos: onde elas estão?”, Thabata expõe dados pioneiros que traduzem a desigualdade em números concretos. Entre 2016 e 2023, a participação de mulheres negras como solistas não ultrapassou 20%, enquanto homens negros chegaram a representar 30,6% das atrações em 2023.

Racismo estrutural refletido nos line-ups

Os dados evidenciam um crescimento inconsistente da presença feminina nos festivais. Em 2023, as mulheres, no geral, não chegaram a representar 35% dos artistas nos eventos analisados, enquanto homens dominaram os line-ups. 

Pesquisa de Thabata Lima Arruda sobre disparidade de gênero nos line-ups de festivais (Crédito: Reprodução)
Pesquisa de Thabata Lima Arruda sobre disparidade de gênero nos line-ups de festivais (Crédito: Reprodução)

No recorte racial, a disparidade é ainda mais clara: o ápice da participação de mulheres negras foi em 2021, com 26,1%, mas esse percentual caiu para menos de 20% nos anos seguintes. Já a presença masculina preta tem aumentado, impulsionada pelo rap, um dos poucos gêneros que registraram avanços na inclusão racial.

A análise de Thabata não se limita aos números. Sua pesquisa destaca como a exclusão de mulheres negras nos line-ups está ligada a desigualdades estruturais mais amplas, como a ausência de diversidade nas curadorias e a concentração de investimentos em artistas homens. Esses fatores perpetuam uma cadeia produtiva marcada pela invisibilidade de mulheres negras, tanto nos palcos quanto nos bastidores.

Divulgados em sua newsletter Discuba, onde publica suas análises perspicazes sobre o mercado da música, os estudos de Thabata são ferramentas valiosas para compreender o impacto dessas desigualdades no mercado da música e buscar soluções para transformar o setor. 

A pesquisadora conversou com o Mundo da Música sobre as motivações do trabalho e os caminhos possíveis para um negócio da música mais justo e igualitário. Trata-se de uma reflexão necessária para encerrar este mês da Consciência Negra — a ser levada para todos os outros meses do ano.

Pesquisa de Thabata Lima Arruda sobre disparidade racial nos line-ups de festivais (Crédito: Reprodução)
Pesquisa de Thabata Lima Arruda sobre disparidade racial nos line-ups de festivais (Crédito: Reprodução)

Entrevista: Thabata Lima Arruda

Mundo da Música: Thabata, o que motivou a criação da pesquisa e quais foram os principais desafios para mapear a presença de mulheres negras no mercado da música?

Thabata Lima Arruda: Em 2018, tive contato com uma pesquisa realizada pela Ruidosa, um festival e plataforma de conteúdo chilena idealizada pela cantora e compositora Francisca Valenzuela. O estudo analisou as programações de festivais em quatro países da América Latina — Chile, Argentina, México e Colômbia — para levantar a porcentagem de presença de mulheres nesses palcos. Fiquei profundamente impactada pelos gráficos apresentados no relatório. Embora já estivesse no mercado musical há bastante tempo e tivesse plena consciência de como sempre me senti sozinha em diversos espaços — seja em camarins ou equipes de produção —, visualizar dados agregados, com um recorte específico, trouxe uma dimensão completamente nova ao problema. Foi então que percebi que minha sensação de solidão, por ser uma mulher preta, não era apenas uma vivência individual, mas refletia algo coletivo e muito mais amplo. Motivada por isso, comecei a reunir dados do Brasil e, em 2019 e 2020, publiquei as primeiras pesquisas por meio da revista Zumbido, uma publicação digital do Selo Sesc. Até então, meu foco estava no recorte de gênero. No entanto, como mulher preta e trabalhadora da música, senti a necessidade urgente de também mapear a desigualdade racial nos palcos. Em março deste ano, publiquei uma nova versão dos relatórios iniciais, agora incorporando dados sobre diversidade racial. Um dos maiores desafios ao abordar a questão das mulheres pretas foi evitar suposições e garantir que a identidade de gênero ou raça de cada artista não fosse assumida arbitrariamente. Todo o trabalho foi conduzido com muito cuidado, utilizando a observação e, principalmente, investigando como cada artista se posiciona publicamente em seus canais oficiais. Sempre que havia incertezas, optei por não contabilizar. Por isso, o relatório deixa claro que há uma margem de erro nos percentuais finais. Outro desafio significativo foi realizar esse trabalho de forma independente, sem financiamento institucional, público ou privado, e contando apenas com meus próprios recursos e esforços.

Mundo da Música: Seu levantamento aponta para oscilações na presença de mulheres pretas nos festivais ao longo dos anos, sem um crescimento consistente. Quais fatores você acredita que contribuem para essa instabilidade?

Thabata Lima Arruda: Embora as mulheres pretas sejam o maior grupo populacional do Brasil, ainda somos as que recebem os menores salários, sofremos mais violência de gênero, temos menos acesso à educação e empregos formais, entre outras dificuldades. A mulher negra ocupa a base da pirâmide social deste país! Isso é resultado de um problema estrutural, assim como a misoginia, ou seja, algo profundamente enraizado em nossa sociedade. Por essa razão, em uma sociedade racista, misógina e lgbtfóbica, não é surpreendente que tanto a indústria fonográfica quanto o mercado de festivais reproduzam essas estruturas. Essa realidade se reflete na ausência de pessoas pretas nos palcos, nos bastidores, nas curadorias, em cargos de liderança e em toda a cadeia produtiva. E isso não é apenas uma evidência anedótica, há dados que comprovam essa realidade, deixando claro que ela não pode ser ignorada. Gostaria de dar uma resposta menos direta ou mais leve, mas o principal fator para o crescimento inconsistente de mulheres pretas nos palcos é o racismo, que se manifesta de várias formas. Seja na exclusão consciente de artistas pretas nos lineups, na contratação com o menor cachê, o pior rider ou o tratamento artístico mais precário, ou ainda na inclusão apenas para atender exigências de editais, o racismo continua presente. Por ser estrutural, profundo e enraizado, esse problema não será resolvido de um ano para outro ou com ações pontuais. É necessário um comprometimento real para desenvolver um trabalho contínuo e efetivo.

Mundo da Música: Você menciona que o crescimento contínuo da participação de homens pretos nos festivais pode estar relacionado ao impacto global do rap. Como esse fenômeno pode ser aproveitado para promover uma inclusão mais significativa de mulheres negras nos palcos?

Thabata Lima Arruda: Contratando as mulheres do rap! Elas estão aí, prontas para trabalhar! As artistas não prosperarão financeiramente, não construirão público e, muito menos, venderão ingressos enquanto oportunidades e palcos não forem criados ou disponibilizados para que possam mostrar seus talentos. Nunca houve tantas mulheres fazendo rap no Brasil como agora. São trabalhos sérios, relevantes, inovadores e com públicos formados e engajados. O rap feminino vive um momento incrivelmente promissor. Ainda assim, festivais bem patrocinados, que reúnem públicos de 20, 30 mil pessoas, conseguem o absurdo de apresentar, em 2024, programações com 0% de mulheres pretas. O que é contraditório, considerando que o rap, como parte de um movimento maior, o Hip Hop, com mais de 50 anos de história, sempre se orgulhou de ser uma ferramenta de transformação social. No entanto, quando o assunto é misoginia e racismo, parece que ainda estamos muito longe de qualquer mudança ou diálogo direto.

Mundo da Música: Considerando que o público do Mundo da Música inclui produtores e executivos do setor, quais ações práticas você recomendaria para que esses profissionais promovam uma maior inclusão de mulheres pretas em seus eventos e produções?

Thabata Lima Arruda: Mais uma vez: contratando essas mulheres! Especialmente para posições de liderança e curadoria. Embora muitas mulheres pretas estejam desbravando o mercado — frequentemente optando por empreender para criar seus próprios caminhos ou forçando as portas para entrar e ocupar os espaços — é fundamental que oportunidades sejam criadas. Não há muito para onde correr ou inventar. Além disso, esses espaços precisam ser seguros para que essas mulheres possam contribuir com suas vivências, experiências, ideias e, claro, trabalho. Ações pontuais com marcas, como os “dias delas” e mesas temáticas, são interessantes enquanto momentos de reflexão e troca de ideias. No entanto, enquanto nossas vozes não forem consideradas nas mesas onde decisões importantes são tomadas, de janeiro a dezembro, o mercado continuará nos excluindo e não avançaremos em mudanças estruturais. Finalizo com algo que escrevi no último relatório que publiquei e que tenho repetido: estamos falhando como indústria ao permitir que o potencial criativo e profissional de parte dessa cadeia produtiva continue sendo limitado pela misoginia e pelo racismo. É urgente e necessário um plano de ação sério para confrontar, desafiar e legislar sobre as condições desiguais que sabemos que existem.

Mundo da Música: Além dessa pesquisa, você está trabalhando ou planeja novos estudos sobre a inclusão de mulheres negras no mercado da música? Se sim, quais serão os próximos passos?

Thabata Lima Arruda: Sim! Quero publicar em janeiro de 2025 os dados referentes a 2024, que venho reunindo ao longo deste ano. Quando 2024 terminar, precisarei sentar novamente, trabalhar nesses dados e escrever. Adoraria criar um banco de dados público, acessível a qualquer pessoa, para consultar tudo sempre que quisesse e entender se o festival que frequenta é inclusivo e diverso. Afinal, são 9 anos de dados reunidos, de 2016 a 2024. Também penso na possibilidade de encontrar um veículo para publicar esse material. Tudo ainda é incerto, confesso. Nas primeiras vezes, contei com o espaço do Selo Sesc, mas neste ano publiquei tudo na minha newsletter. Acaba sendo um trabalho de guerrilha mesmo, com a ajuda de outras pesquisadoras, artistas, pessoas interessadas e jornalistas como você, que “espalham a palavra”. Além disso, vez ou outra surgem oportunidades de falar em eventos ou ministrar palestras, e é dessa forma que tenho conseguido chamar atenção para o tema e para os dados. Seguimos!