O impacto de pular o processo: criatividade e aprendizado em crise

Artigo de opinião assinado por Marco Vasconcellos para o Mundo da Música.
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Marco Vasconcellos
Composição, criatividade

Com a chegada cada vez mais impactante de ferramentas que nos ajudam a otimizar a produção e criar resultados imediatos, estamos ignorando cada vez mais a importância do processo. Do caminhar, do passo a passo. Estamos ignorando nossas tentativas frustradas; a intimidade com o conteúdo que consolida a memória e estabelece o aprendizado; o entendimento mais profundo; a busca pelos detalhes pessoais e, principalmente, o desenvolvimento da nossa originalidade!

Todos buscam as mesmas fontes. Inclusive com o intuito de que se tenha um resultado padrão. E é isso que temos tido no meio musical recente, em sua maioria: Resultados padrão.

É verdade que a média técnica subiu em relação à produção artesanal (eles já vêm “prontos”!), mas também é verdade que soam mais iguais, mais impessoais e com menos intenção. Essa palavra parece boba quando passa despercebida. Mas deu vontade de escrever INTENÇÃO. Uma das grandes diferenças entre o Humano e a IA.
*escreverei uma coluna sobre isso em algum momento.

Bem, o valor do processo foi substituído pelo foco total em produtividade… onde produtividade = quantidade.

E uma obsessiva busca por “otimização” = menor tempo e esforço (não necessariamente melhor processo para o melhor resultado).

Produzir de maneira artesanal, envolto aos detalhes é facilmente confundido com perda de tempo ou esforço excessivo em realizar algo que pode ser de “simples” execução.

A automatização exagerada dos processos atrofia as capacidades. Não desenvolve habilidades e conhecimentos. Não estimula o saber, foca na realização. Cria dependência das ferramentas e não constrói as pontes de associação do aprendizado. Não há conhecimento adquirido. Apenas uma tarefa cumprida.

A automatização exagerada tira a motivação de percorrer a estrada do aprendizado quando sua habilidade está muito aquém, e estimula a ansiedade de chegar rapidamente aos resultados. Isso tem contribuído para o aumento da ansiedade como transtorno.

Compositor durante processo criativo, criatividade
Compositor durante processo criativo

Quando idealizamos e argumentamos de maneira positiva e entusiasmada que ferramentas de soluções preestabelecidas vieram para ajudar a criatividade a transpor a barreira das limitações, não enxergamos que na verdade o uso delas em larga escala tem criado e mantido essas limitações. Apesar de serem apenas ferramentas, sem intenção. Intenção… olha ela aí de novo. 

Nossa contradição então é: usamos o ChatGPT para escrever o que nós mesmos sentimos; o Suno para fazer as letras e melodias que supostamente criamos; Splice para fazer os arranjos que imaginamos; IA de voz para substituir a nossa e trazer novas maneiras; edições nas DAWs para colocar os instrumentos no tempo que eles não tocaram; plugins que afinam a voz de maneira não natural e por aí vai… que cadeia de produção estranha, não?

Dessa maneira, como não chegaríamos ao ponto de questionar a falta de originalidade?! Se todos usam os mesmos meios!

Investimos bilhões em treinar massivamente os computadores para se parecerem cada vez mais humanos, e temos investido nosso tempo como humano em ficar cada vez mais parecidos com os computadores.
Os macacos devem estar fazendo aquele desenho da evolução da espécie no sentido contrário… brincadeira, claro que não. Talvez… Mas sou fã do ser humano!

Então é durante o processo que o artista encontra caminhos novos. Por acidente, por dar de cara com a inspiração (enquanto transpira! Muito!) e por criar saídas para as próprias limitações também.

Pular esse período tira a possibilidade que uma dessas 3 vias aconteça. E então que via nos restará na busca por algo original e relevante? Na busca pelo aprendizado consistente. Na busca por identidade. Hum…

Não estamos potencializando nossa capacidade de criar melhor com os assistentes virtuais. Estamos ficando mais preguiçosos para chegar aos mesmos resultados. Sem capacidade de insistir, mergulhar, deixar o caldeirão fervilhar por dias, meses. Dar a obra todos os estados de espírito e visões que você passou durante todo o período. As tomadas de decisões. 

Outro desdobramento seria o fato de que as novas gerações são criadas ouvindo diretamente esse tipo de obra e adotando esses “não processos” desde cedo. Entendendo isso como uma maneira natural de “aprendizado”. Têm uma referência já de nível mais baixo, menos profundo. E também o entendimento menos sólido.

Uma mensagem para a nova geração, como todo amor e carinho (zero ironia): Quando você lê o resumo de um livro, você não leu o livro; quando compõe uma música no Suno, não compôs uma música; faz um arranjo que é um mosaico de opções do Splice ou prompts de IA, você não criou um arranjo. Chegar ao fim de uma missão, pulando etapas, não é o mesmo que ter cumprido a missão.

Não quer dizer que não se possa tomar um desses caminhos para resolver situações específicas, se divertir ou realizar algo. Claro que sim!

Mas se você faz isso em todos os campos da vida, está se atrofiando. Ensinando seu corpo a andar com muletas. Não está desenvolvendo a musculatura, o equilíbrio e a consciência corporal para andar sem muletas. Isso vale para a criação.

Se você é jovem e está lendo, por favor não fique bravo. De verdade. Esses pontos de atenção valem para todas as idades. Porque não é sobre a geração. É sobre a possibilidade de nos deixarmos preguiçosos no aprendizado, ansiosos com o resultado, focados sempre num padrão e mais superficiais nos envolvimentos.

Processo não é atraso: é o lugar onde a intenção vira linguagem. Ferramentas são bem-vindas — quando servem ao que queremos dizer, não quando nos dizem como dizer. Talvez o compromisso possível para todos — iniciantes e veteranos — seja simples: reservar um espaço irrenunciável para o percurso. Nem purismo, nem atalho como regra. Só a decisão consciente de cultivar pelo menos uma parte do caminho em cada obra. É ali que a nossa assinatura aparece — e isso está aberto a qualquer pessoa disposta a caminhar.

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