Catharina Dória fala sobre o impacto da inteligência artificial na música e a urgência da ética digital

A especialista Catharina Dória comenta o caso Taylor Swift e defende que público e artistas entendam o que está por trás das novas tecnologias.
Foto de Nathália Pandeló
Nathália Pandeló
Catharina Dória, especialista em ética em inteligência artificial (Crédito: Divulgação)
Catharina Dória, especialista em ética em inteligência artificial (Crédito: Divulgação)

A inteligência artificial deixou de ser ficção científica para se tornar parte do cotidiano e o mercado musical é um dos campos em que seu impacto é mais sentido. De playlists automatizadas a vozes sintéticas de artistas, essa tecnologia já levanta dilemas éticos, criativos e jurídicos. 

É nesse cruzamento entre inovação e responsabilidade que atua Catharina Dória, especialista brasileira em ética da inteligência artificial reconhecida internacionalmente por traduzir temas complexos para o público de forma acessível. Com mais de 270 mil seguidores nas redes sociais, ela se tornou uma das principais vozes do debate sobre o uso responsável da tecnologia.

Na prática, o trabalho de um especialista em ética de IA vai muito além da programação. Envolve entender como a tecnologia é usada, quem ela beneficia, quem pode ser prejudicado e quais limites precisam ser definidos para evitar danos sociais. Catharina chegou a essa área unindo comunicação e tecnologia: estudou comportamento digital, aprendeu a programar e trabalhou com governança de IA em empresas internacionais. O foco, segundo ela, é garantir que as decisões sobre o uso da inteligência artificial sejam responsáveis, transparentes e orientadas pelo impacto real que causam na vida das pessoas.

“Se essas pessoas que têm poder decidirem que vão usar IA de maneira irresponsável, vai prejudicar se a gente vai ter emprego ou não. Vai prejudicar o que significa que o conteúdo é nosso ou não. Vai prejudicar a maneira que a gente se relaciona interpessoalmente. Então por isso que as pessoas precisam se preocupar. Porque isso são decisões que estão sendo tomadas que vão afetar a nossa vida todos os dias.”

Em entrevista exclusiva ao Mundo da Música, Catharina analisa como o avanço da IA está transformando a indústria musical e explica por que artistas, fãs e empresas precisam discutir ética, autoria e responsabilidade antes de apertar o próximo play.

O uso de IA na música e a reação do público

O debate sobre inteligência artificial na música já não é novo, mas continua se reinventando a cada dia. Se em um primeiro momento a discussão parecia restrita a experimentos curiosos e vozes sintéticas em plataformas, hoje ela se tornou parte das estratégias de marketing, da criação de videoclipes e até da forma como o público reage ao que consome. Cada novo episódio traz implicações diferentes para artistas, produtores e fãs.

Foi o que aconteceu com Taylor Swift, depois que vídeos promocionais do novo álbum da cantora levantaram suspeitas de uso de IA generativa. O caso gerou uma onda de discussões nas redes e até a hashtag #SwiftiesAgainstAI. Para Catharina Dória, o que esse episódio revela é que o público já entende que a arte é, antes de tudo, um ato humano.

“O problema está na inteligência artificial generativa, que veio com críticas desde o início. Ela nada mais é do que um compilado, que muita gente considera roubado, da internet: artigos, textos, comentários, imagens e desenhos de pessoas que nunca foram creditadas nem pagas. Essa IA generativa basicamente faz uma colagem de algo diferente.”

Por isso, segundo ela, o incômodo dos fãs tem um motivo legítimo. 

“As pessoas entendem que a música, ou o vídeo, é algo artístico, uma reprodução humana. É algo que a gente faz de humano pra humano. E, no momento em que uma celebridade tenta tirar essa parte humana pra usar inteligência artificial generativa, ela não está necessariamente respeitando o que o coletivo entende como arte.”

Catharina lembra que esse não é um debate novo entre artistas e tecnologia, mas que a IA generativa amplia a complexidade. 

“Eu acho que o que a gente percebe muito aqui é que as pessoas têm consciência do que é arte. Eu acho isso até muito bonito. As pessoas estão realmente muito chateadas. É porque elas falam: ‘Putz, arte é alguma coisa humana. A arte é feita por pessoas que sentem. A IA não sente.’”

Mesmo sem confirmação de que as imagens da campanha de Swift foram criadas por IA, o caso serviu como gatilho para um debate global sobre os limites entre inovação e autenticidade. E, como explica Catharina, o desconforto coletivo com o tema é um sinal importante de maturidade social diante da tecnologia.

O desafio à autoria e aos direitos de artistas

Se o caso Taylor Swift acendeu o debate sobre autenticidade, as plataformas que prometem criar músicas em segundos levaram a discussão para o campo dos direitos autorais. Ferramentas como Suno e Udio, que produzem faixas completas a partir de comandos de texto, têm atraído curiosos e criadores do mundo todo. Mas por trás da aparente democratização do acesso à produção musical, há cláusulas de uso que transferem a autoria das criações para as próprias empresas.

Para Catharina, isso é tudo, menos democrático. 

“É bem complicado. E aí começamos a discutir o que é meu e o que é seu. Por exemplo: se a Taylor realmente fez aqueles vídeos com IA, isso significa que o conteúdo não é dela? Que qualquer pessoa pode reproduzir? Ou o nome dela basta pra tornar aquilo ‘dela’? Onde está a autoria? Aí surgem os debates complicados sobre o que é propriedade.”

A falta de leis claras e atualizadas faz com que o público e os próprios artistas fiquem em um limbo jurídico. 

“A fronteira entre o que é e o que não é IA está completamente confusa. E enquanto não houver uma lei de transparência, todo mundo vai ficar maluco tentando descobrir o que é real.”

A especialista destaca ainda um ponto que tem provocado desconforto em diferentes setores da cultura: o uso da IA para recriar artistas já falecidos. Michael Jackson, Tupac Shakur e Robin Williams são todos exemplos recentes de aparências recriadas em vídeos de IA.

“Eles merecem dignidade, vivos ou mortos. O legado deles, a música que criaram, a imagem que representam. Então: cadê as leis que protegem os mortos de serem usados por IA generativa?”

Essas discussões, segundo ela, não se limitam ao campo jurídico. Elas envolvem ética, respeito e a própria noção de humanidade no processo criativo. 

“Tudo isso fala sobre dignidade, respeito e o direito das pessoas sobre sua imagem, sua inteligência e seu intelecto.”

A importância do letramento e da transparência na era digital

Enquanto a legislação ainda tenta acompanhar o ritmo das transformações tecnológicas, o público passou à posição de protagonista na definição dos limites éticos do uso de inteligência artificial. Para Catharina Dória, é o comportamento das pessoas nas redes que tem funcionado como freio às decisões mais irresponsáveis de empresas e artistas.

“Se o público não fosse tão vocal nas redes, as empresas estariam usando muito mais IA sem responsabilidade nenhuma. O cancelamento do uso irresponsável da IA generativa é o que está freando essas empresas, artistas e pessoas. Porque a legislação brasileira e a internacional estão muito defasadas.”

É por isso que, segundo ela, o letramento digital se tornou essencial. 

“É o que permite que as pessoas entendam o que está acontecendo e criem coletivos pra levantar a mão e dizer: ‘Aqui, não.’ No final, é simples: a gente paga com nossos reais e dólares. Se as empresas fizerem o que quiserem, o público tem o poder de reagir. Isso não depende de lei.”

Mas, para que o público consiga reagir, também é necessário ter acesso a informações claras. Catharina defende políticas imediatas de transparência que obriguem as empresas a revelar quando e como a inteligência artificial é usada. 

“Precisamos de leis de transparência, e precisávamos delas pra ontem. Principalmente para marcas. Por exemplo, se um influenciador precisa marcar uma publicidade com ‘#publi’, as empresas também deveriam ser obrigadas a indicar quando estão usando inteligência artificial.”

Essa transparência, para ela, é o mínimo necessário para restabelecer uma relação de confiança entre público, criadores e tecnologia. Só assim será possível equilibrar inovação e responsabilidade, especialmente em uma indústria criativa como a da música.

O risco de dependência e o impacto da IA no processo criativo

Personalidades já falecidas aparecem em vídeos feitos com Sora
Personalidades já falecidas aparecem em vídeos feitos com Sora (Crédito: Reprodução)

Mesmo quando usada de forma aparentemente inofensiva, a inteligência artificial pode criar uma dependência difícil de perceber. Para Catharina Dória, o uso constante dessas ferramentas está afetando a maneira como as pessoas pensam, produzem e se relacionam com a própria criatividade.

“Já sabemos que o ChatGPT está viciando as pessoas. Elas respiram e pensam: ‘Vou mandar lá pra ver o que ele acha.’ As pessoas estão perdendo o cognitivo porque estão usando o ChatGPT pra pensar. Estão usando como terapeuta, como amigo. E isso está piorando as relações interpessoais.”

No universo da música, a lógica não é diferente. A especialista explica que recorrer à IA para criar harmonias, letras ou melodias pode parecer um atalho, mas acaba reduzindo o aprendizado e a autonomia dos artistas. 

“Na música, é a mesma coisa. ‘Pra que eu vou compor esse acorde se o Suno pode fazer?’ ‘Pra que aprender violão se posso pedir pra IA?’ Assim, você para de aprender e fica dependente da ferramenta pra sempre. Isso não é democratização. Pra mim, democratização é ter o conhecimento na cabeça, pra poder usar quando quiser, sem precisar pagar pra isso.”

Ela destaca que, embora muitas plataformas vendam a ideia de democratizar o acesso à criação, o efeito costuma ser o oposto. 

“As pessoas estão parando de pensar. Que democratização é essa em que as pessoas ficam viciadas em uma ferramenta que, em breve, será paga? Eu não acho que isso é democrático. Isso é viciar uma população em uma ferramenta que logo terá custo. E, se você não paga em dinheiro, paga com seus dados.”

Para Catharina, a verdadeira democratização passa pelo conhecimento humano e pela educação crítica sobre o uso das tecnologias. No caso da música, isso significa manter viva a experiência artística, com espaço para o erro, a intuição e a emoção, elementos que nenhuma máquina é capaz de reproduzir.

A ética e do pensamento crítico em tempos da IA

Discutir inteligência artificial, para Dória, é discutir poder, responsabilidade e consciência coletiva. Ela acredita que entender a tecnologia vai muito além de aprender a usá-la e que o verdadeiro desafio está em formar uma sociedade capaz de questionar o que está por trás de cada ferramenta.

“Pensar em IA é pensar politicamente. E letramento não é aprender a usar o ChatGPT. É entender o que é IA, como foi construída, por que é ruim pro planeta e quais debates estão acontecendo. Isso é letramento.”

A especialista também defende que criadores, jornalistas, empresas e o público em geral mantenham um olhar crítico sobre as mudanças que estão acontecendo. Para ela, o debate ético precisa ser coletivo e contínuo. 

“Eu não quero ser vista como alguém que tem todas as respostas. Eu não quero que as pessoas acreditem em tudo o que eu falo. Quero que elas pensem criticamente, que se perguntem: ‘Será que faz sentido pra mim?’ O que eu quero é provocar reflexão. Porque se a gente começar a repetir tudo o que os outros dizem, a gente para de pensar. E esse é o perigo: terceirizar o pensamento pra outra pessoa, ou pra uma máquina.”

Ao longo da conversa, fica evidente que o debate sobre IA não é apenas sobre tecnologia, mas sobre escolhas humanas. Entre avanços, incertezas e possibilidades, Catharina propõe algo simples: olhar com atenção, fazer perguntas e não perder de vista a responsabilidade que vem com cada clique.

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