A construção de carreira na engenharia de som: da formação técnica à gestão de projetos

Fabrício Modesto, com mais de uma década de experiência na área da engenharia de som, dá dicas para quem quer entrar ou avançar na carreira.
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Nathália Pandeló
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Fabrício Modesto, engenheiro de áudio (Crédito: Divulgação)

A engenharia de som é uma disciplina que opera na interseção entre a sensibilidade artística e o rigor da física acústica. Diferente da composição musical pura, que lida com a estruturação de notas e harmonias, a engenharia foca na materialização sonora dessas ideias, exigindo um domínio profundo sobre como o som é captado, processado e reproduzido. Para os profissionais que ingressam nesta área, a trajetória muitas vezes começa com uma insatisfação técnica: a percepção de que a qualidade sonora de uma produção não condiz com a qualidade da escrita musical.

É nesse contexto que a especialização técnica se torna um divisor de águas. Fabrício Modesto, engenheiro de som com mais de uma década de atuação em publicidade, cinema, games e estúdios de grande porte, personifica essa jornada de evolução profissional. Sua trajetória, que atravessa desde a formação acadêmica em música até a mixagem de álbuns e trilhas complexas, atesta as maiores vantagens desse perfil híbrido: a autonomia criativa e a versatilidade. Ao mesmo tempo, sua experiência expõe os desafios reais da profissão, validando a necessidade de rigor técnico para navegar um mercado marcado por prazos difíceis e altas expectativas estéticas.

O impulso inicial e a formação técnica

O interesse pela engenharia de som frequentemente surge da necessidade de melhorar a própria produção musical. Em ambientes acadêmicos de música, o foco na teoria e orquestração pode deixar lacunas na execução sonora, especialmente quando se utilizam softwares de notação com bancos de sons limitados. A inquietação gerada pela discrepância entre o que é escrito e o que é ouvido torna-se um motor para o aprendizado técnico.

“O interesse começou na faculdade de música e orquestração (…) A gente usava programas de partitura que tinha um som bem ruinzinho, e conseguia ouvir meio mal, mas conseguia ouvir as nossa composições durante as aulas, o que gerou uma certa inquietude de nunca estar satisfeito com aquele som. A escrita está tão legal, mas o som que sai poderia estar melhor, então primeiro de tudo foi tirar um pouco mais de som desses programas de orquestras. (…) Comecei a me interessar mais por esse tipo de conteúdo e quando me formei eu senti essa necessidade: como consigo escrever, mas como fazer essa escrita virar som.”

Após a identificação dessa lacuna, a formalização do conhecimento é o passo seguinte. No Brasil, onde a oferta de bacharelados específicos em engenharia de áudio é escassa, cursos técnicos e institutos especializados cumprem o papel de fornecer a base teórica necessária. É neste ambiente que se estabelecem os primeiros contatos profissionais e se compreende a complexidade da cadeia de sinal e gravação.

“Foi então que me formei depois no curso técnico no IAV – Instituto de Áudio e Vídeo, em São Paulo, que é como um curso de gravação, já que engenharia de áudio não existe no Brasil como bacharel, mas é o que mais se aproxima disso, em 2012. Foi quando começou o cerne de tudo.”

A publicidade como escola de versatilidade

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Fabrício Modesto em estúdio (Crédito: Divulgação)

Uma das portas de entrada mais comuns e intensas para o engenheiro de som é o mercado publicitário. A dinâmica das produtoras de áudio para publicidade exige uma adaptação rápida a diferentes gêneros musicais e estéticas sonoras em um curto espaço de tempo. 

Essa vivência funciona como uma “segunda faculdade”, onde a teoria é testada diariamente sob a pressão de prazos e a necessidade de versatilidade estilística.

“A minha formação prática foi nesse mercado de áudio para publicidade, que é muito dinâmico. Então, foi uma segunda faculdade para mim, onde um dia a gente tinha que fazer forró, outro dia rock, no outro dia música clássica, no outro samba, pagode, funk. (…) Graças a Deus a gente mora em um país que é muito vasto culturalmente, então a publicidade é rica também nesse sentido, de estilos e vertentes.”

Além da variedade estética, o ambiente de produtora permite ao profissional desenvolver habilidades de finalização e mixagem ao corrigir e aprimorar trabalhos. A observação crítica do próprio trabalho e o retrabalho constante para atender às demandas de clientes ou diretores criativos refinam o ouvido técnico. O engenheiro aprende a identificar como a mixagem interfere na interpretação da composição, assumindo o controle da pós-produção para garantir a integridade da obra.

“Comecei a ajudar meus colegas na parte de finalização, algumas trilhas que eu compunha eu via que, por conta da mixagem, às vezes da interpretação, o engenheiro acabava tendo que fazer retrabalho. Então eu acabei começando a mixar minhas próprias coisas para entregar e aí eu fui me desenvolvendo nessa área.”

Vivência de estúdio e networking

A presença física em estúdios de grande porte e o contato com gravações de alto nível são fundamentais para a maturação do engenheiro de som. Observar sessões de gravação complexas e interagir com profissionais experientes acelera o aprendizado de técnicas de microfonação, fluxo de sinal e comportamento em estúdio. A troca de informações com colegas mais experientes consolida o conhecimento tácito que raramente é encontrado em manuais.

“Durante os intervalos, além da publicidade, acompanhava gravações como Músicas para Churrasco volume 2 do Seu Jorge, entre outras gravações icônicas que aconteceram nesse período nesse mesmo estúdio que eu trabalhava. Então eu tive contato com muitos engenheiros de som, um especial Ricardo Câmara (…) A gente trocava muitas ideias, trabalhava muitos toques ali com ele também e acabei mergulhando nesse mundo de engenharia de áudio.”

Para quem busca inserção no mercado, a posição de assistente (seja em estúdio ou em sonorização ao vivo) é estratégica. Estar inserido no ambiente de trabalho, demonstrando organização e competência nas tarefas básicas, coloca o profissional no radar de produtores e diretores. A disponibilidade e a capacidade de resolver problemas simples constroem a reputação necessária para assumir responsabilidades maiores.

“Um caminho prático seria estar num lugar que você consegue conversar com muitas pessoas, de repente um assistente de estúdio, até em lives mesmo, que você está ali com mais gente (…) Procurar onde tenha demanda, geralmente assistente de estúdio, um bom caminho para se iniciar. Ou assistente de live, assistente de qualquer coisa. Nesse sentido, que você fique perto de pessoas que vejam o seu trabalho, deem valor para o seu trabalho e que consigam te indicar para novos trabalhos.”

Fundamentos técnicos, organização e prevenção de erros

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Fabrício Modesto (Crédito: Divulgação)

A base de uma carreira sólida na engenharia de som não se sustenta apenas na prática, mas no domínio de conceitos fundamentais de física e acústica. O conhecimento profundo sobre o funcionamento de microfones, pré-amplificadores e a ciência do som permite ao profissional tomar decisões conscientes, evitando o “achismo”. Fabrício pontua que a disciplina e a organização são competências comportamentais tão valiosas quanto o ouvido apurado. O essencial, segundo ele, é:

“Ser bem organizado, ter estudado bastante, fases, conceitos básicos de acústica, conhecer bem os microfones, pré-amplificadores e tudo, pesquisar (…) e ser pontual e organizado, são algumas das características. A experiência você acaba adquirindo com o tempo, mas esse lance da disciplina é fundamental.”

A experiência técnica permite antecipar problemas antes que eles se tornem irresolvíveis na mixagem. Um engenheiro experiente, ao receber material de um set de filmagem ou de uma gravação ao vivo, já conhece as armadilhas comuns, como vazamentos, problemas de fase ou ruídos de cabos. Essa capacidade de previsão possibilita orientar a captação na origem, garantindo uma matéria-prima de melhor qualidade para a pós-produção.

“Eu já sei os problemas quando eu receber um áudio vindo de um set de filmagem. Eu já sei os desafios que eu vou enfrentar quando vem um áudio para mixar de um ao vivo. (…) Se a gente conversar com antecedência, então a gente cria uma certa casca para lidar com os problemas que podem vir desses lugares. (…) Às vezes você fala, ‘cara, esse áudio veio completamente sem jeito aqui, tudo estourado, veio ruim’, mas aí você lembra lá do cara que passou o cabo, falhas técnicas, então você já consegue se antecipar.”

Tecnologia e atualização constante

O áudio é inerentemente tecnológico. Desde o advento da gravação até as ferramentas modernas de correção de afinação e alinhamento de fase, a profissão exige atualização contínua. No entanto, o uso da tecnologia deve ser ancorado no conhecimento teórico. Ler manuais de equipamentos e softwares revela funcionalidades essenciais que podem salvar uma sessão de gravação e otimizar o fluxo de trabalho.

“Eu acho que tem que ficar sempre atento a todas as inovações, tudo que envolve áudio. No geral, porque todo dia tem uma coisa nova que às vezes muda o jogo, às vezes muda o jeito que as pessoas mixam completamente (…) estar sempre em dia com o básico, que são os estudos de física e acústica, que eu acho que é sempre importante para a gente ter noção do que está sendo feito ali dentro do software (…) Tem que ler manual de equipamento, tem que ver como ele funciona, tem coisas incríveis escondidas nos manuais, isso eu posso garantir.”

O domínio da ferramenta, seja Pro Tools, Logic ou qualquer outra DAW (Digital Audio Workstation), é mandatório. Em situações de alta pressão, como gravações de orquestras com dezenas de músicos, a hesitação técnica pode custar caro. A fluência no software garante que a tecnologia não seja um obstáculo para a execução artística.

“Eu já vi gente ‘sambando’ porque não sabia uma configuração e acabar com uma gravação, e às vezes a gravação envolve aluguel de estúdio, cachê de músicos, nesse caso a gente tá falando de uma orquestra, então eram 60 músicos que estavam esperando um engenheiro que não tinha muita experiência achar o botão certo ali (…) Tem que estar sempre muito bem afiado com o software que você está operando.”

Técnica a serviço da arte e relação com o cliente

MIDiA

A engenharia de som, em última análise, utiliza a técnica para viabilizar uma visão artística. Após a “limpeza” técnica (correção de fase, equalização corretiva, ajustes de ganho), entra a etapa subjetiva e estética. A técnica oferece a segurança para experimentações artísticas, permitindo que decisões ousadas sejam tomadas com a certeza de que o resultado final será tecnicamente viável.

“De muitas formas ela é realmente muito técnica, mas depois que você aplicou toda a técnica ali e fez toda a limpeza do som (…) ainda tem a parte do timbre, de uma coisa que é artística (…) A gente tem que usar a técnica no nosso favor, pra gente conseguir desempenhar o que a gente quer artisticamente, e essa ferramenta é a técnica. (…) A gente pode gravar tudo bem, gravar um som conceitual, sei lá, um microfone no banheiro e tal, desde você saiba que isso pode implicar tal coisa no som e que tudo isso vai dar certo.”

O maior desafio profissional muitas vezes não é técnico, mas interpretativo. Compreender o briefing e a expectativa do cliente é crucial. O engenheiro deve atuar como um parceiro que soluciona problemas e eleva a qualidade do material, evitando conflitos de ego. A capacidade de alinhar a visão técnica com o desejo do cliente, cumprindo prazos apertados sem sacrificar a qualidade, é o que define o sucesso de um projeto.

“O fator prazo com exigência técnica porque até você consegue uma coisa rápida, mas não de alto nível rápida. Então o maior desafio foi aprender ser rápido com qualidade e entender o que o cliente quer. (…) Acho que é a coisa mais difícil é compreender o que a pessoa que te contratou quer que você faça com aquele material que ela está te entregando. (…) Entender o propósito do cliente e onde ele quer chegar com aquilo e propor uma melhor solução e caminhar junto e nunca contra o cliente, querendo se provar de alguma maneira.”

Nesse equilíbrio entre técnica, escuta e interpretação de expectativas, a engenharia de som deixa de ser apenas execução e passa a ser mediação. É essa capacidade de traduzir intenções artísticas em soluções técnicas concretas que sustenta projetos bem-sucedidos e relações profissionais duradouras no áudio.

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