O Carnaval que ninguém vê: Relatório expõe relação desigual entre marcas e comunidades na festa

Relatório do ECÖ, braço de inteligência cultural do hub AUÊ, aponta que marcas lucram mais do que quem sustenta o Carnaval.
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Nathália Pandeló
Capa do 1º report O Carnaval Que Ninguém Vê, da ECÖ
Capa do 1º report O Carnaval Que Ninguém Vê, da ECÖ (Crédito: Reprodução)

O Carnaval no Brasil sempre foi tratado como festa popular e, muitas vezes, citado como um espaço democrático. No entanto, o report “ECÖ – O Carnaval Que Ninguém Vê”, produzido pelo hub criativo AUÊ, mostra que a história vai bem além da folia. 

A pesquisa revela que a festa tem peso econômico e cultural, mas também escancara uma relação desigual: enquanto grandes marcas faturam alto, as comunidades que fazem o Carnaval acontecer seguem sem receber retorno na mesma proporção.

O estudo foi realizado ao longo de dez meses, com acompanhamento em territórios, monitoramento de redes sociais e entrevistas com pessoas envolvidas na organização de blocos e escolas de samba. O material analisa a dinâmica da festa em 2024 e aponta caminhos para marcas e agentes do mercado cultural repensarem seu papel diante do evento, que já bate às portas em 2025.

Thamara Pinheiro, CEO, co-fundadora e Diretora Criativa e Negócios da AUÊ, resume a iniciativa:

“O report foi criado para que possamos demonstrar que a inovação cultural permite que as marcas se conectem de forma genuína com a pluralidade da cultura brasileira. Nosso trabalho é transformar essa diversidade em um valor real para as empresas e para a sociedade”.

Carnaval como palco musical e histórico

O report destaca que o Carnaval funciona como grande palco onde histórias do Brasil são contadas por meio da música e das artes visuais. Sambas-enredo, marchinhas e ritmos afro ajudam a preservar a memória do país e reforçam a identidade de regiões e comunidades.

Exemplos recentes reforçam essa função. Em 2024, a Vai-Vai, em São Paulo, homenageou os 50 anos do hip-hop, colocando em evidência a importância do gênero na cultura periférica. 

No Rio, a Portela levou para a Sapucaí a história do livro “Um Defeito de Cor”, de Ana Maria Gonçalves. O desfile gerou uma corrida às livrarias e esgotou a obra. Em 2025, a Paraíso do Tuiuti levará à avenida Xica Manicongo, reconhecida como a primeira mulher trans do Brasil.

Mulheres negras como pilar da festa

O estudo também aborda o protagonismo das mulheres negras na estrutura do Carnaval. Elas estão na base da produção, desde a confecção de fantasias até a cozinha das quadras, passando por cargos simbólicos, como baianas e rainhas de bateria.

Mesmo com essa presença marcante, essas mulheres ainda são pouco reconhecidas por marcas e patrocinadores. Dados do Instituto Locomotiva indicam que mulheres negras representam 27% da população e movimentam R$ 1,6 trilhão por ano. Apesar disso, elas seguem sub-representadas em campanhas publicitárias e nos cargos de liderança dentro do mercado da música e do entretenimento.

Carnaval como motor econômico

Renan Damasceno e Thamara Pinheiro (Crédito: Cat Tenório)
Renan Damasceno e Thamara Pinheiro (Crédito: Cat Tenório)

Os números levantados pelo relatório confirmam que o Carnaval movimenta cifras altas. Em 2024, segundo a Confederação Nacional do Comércio (CNC), a festa gerou R$ 9 bilhões para o turismo e o varejo. O setor de bebidas faturou R$ 2,5 bilhões, de acordo com a CervBrasil, enquanto alimentos alcançaram R$ 1,8 bilhão, segundo a Abras.

As marcas investem pesado em publicidade: foram R$ 500 milhões aplicados em 2024, conforme dados do Meio & Mensagem. Mas, ao mesmo tempo, costureiras, aderecistas e músicos que trabalham nos bastidores continuam recebendo valores baixos e convivendo com condições precárias. Prova disso foi o recente incêndio em uma fábrica responsável por fantasias de escolas de samba da Série Ouro do Rio.

Renan Damascena, CSO, co-fundador e Diretor de Estratégia e Cultura da AUÊ, pontua sobre a importância de lançar luz sobre o assunto:

“O report lançado pela Auê reafirma a importância de se criar estratégias publicitárias que realmente valorizem a diversidade cultural do Brasil, marcas que buscam relevância em 2025 precisam ir além da superficialidade e abraçar a inovação cultural. A escuta ativa e a co-criação com as comunidades são essenciais para gerar um impacto verdadeiro e transformador”.

Geração Z enxerga o Carnaval como espaço de mudança

A pesquisa do ECÖ mostra que a Geração Z tem enxergado o Carnaval como mais do que entretenimento. Para esses jovens, especialmente os das periferias, a festa também serve como ferramenta de expressão e empoderamento.

Dados do Datafolha mostram que 56% dos jovens se dizem próximos de movimentos ligados aos direitos humanos. Essa parcela da população valoriza marcas que adotam posicionamentos claros sobre diversidade e igualdade, o que tem começado a transformar as práticas do mercado.

Inclusão e acessibilidade seguem como desafio

Outro ponto tratado pelo report é a questão da acessibilidade. Algumas escolas e blocos têm buscado oferecer alas inclusivas, mas a realidade é que ainda faltam esforços mais amplos. Segundo o IBGE, 17,3% da população brasileira possui algum tipo de deficiência.

No entanto, essa fatia não aparece com frequência nas campanhas que circulam durante o Carnaval. A presença de pessoas com deficiência nos desfiles tem crescido, mas ainda está longe de ser regra.

Comunidades trabalham o ano inteiro, marcas aparecem em fevereiro

O report também enfatiza que, enquanto as marcas chegam ao Carnaval próximas da data e focam apenas no retorno comercial, as comunidades trabalham de janeiro a dezembro. Fantasias são recicladas e reaproveitadas, carros alegóricos são desmontados e remontados, e o trabalho nunca para.

Esse descompasso reforça o caráter extrativista da relação entre empresas e comunidades. Quem lucra são as marcas, mas quem produz e resiste é o povo que sustenta o Carnaval no dia a dia.

Marcas precisam repensar estratégias

Os dados levantados pela AUÊ sugerem que as marcas têm a oportunidade de se aproximar das comunidades de forma mais genuína. O report aponta que o envolvimento ao longo do ano, com apoio a projetos sociais e culturais, pode gerar relações mais consistentes e retornos de imagem mais sólidos.

A pesquisa também indica que ignorar as novas demandas do público, principalmente das mulheres negras e da Geração Z, pode se tornar um risco. Esses segmentos já se mostram mais exigentes e escolhem consumir de marcas que compartilham seus valores e reconhecem seu papel cultural.

Carnaval segue como vitrine e espaço de disputa

O Carnaval se consolida como espaço essencial para o mercado da música e da publicidade, mas também como campo de disputa. Por trás das alegorias, há trabalhadores e histórias que garantem a continuidade da festa.

Para marcas, artistas e executivos do setor, o report da AUÊ funciona como alerta e convite: o Carnaval é vitrine potente, mas também exige novas práticas e maior compromisso com quem faz a festa acontecer.

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