A indústria da música acaba de dar um passo inédito em direção à inclusão com a publicação da primeira Trans Charter global, um conjunto de diretrizes voltadas à promoção de igualdade, reconhecimento e segurança para pessoas trans e não binárias no setor.
A iniciativa, liderada pela ativista e consultora de diversidade Saskhia Menendez, já conta com versões específicas para Estados Unidos, Canadá e União Europeia, e está aberta à adesão de empresas, organizações e profissionais da música.
O documento estabelece compromissos para a criação de ambientes de trabalho seguros, políticas de contratação inclusivas, reconhecimento da identidade de gênero em todos os processos e ações concretas de visibilidade para artistas trans e não bináries.
“Ao assinar a Trans Charter, você está ajudando a pavimentar o caminho para uma mudança sistêmica na indústria, garantindo que artistas trans e não binários recebam o reconhecimento e o respeito que merecem”, afirmou Menendez em publicação nas redes sociais durante o lançamento da carta.
A proposta é que as organizações que aderirem à carta revisem seus processos internos, assegurem representatividade e ajudem a construir uma cultura livre de discriminação e transfobia. O documento também sugere práticas para plataformas de streaming, agências de talentos, festivais e empresas de tecnologia que atuam no ecossistema musical.
Princípios da carta trans
Entre os pontos centrais do Trans Charter estão a exigência de formações específicas em diversidade e inclusão, a criação de canais seguros para denúncias de discriminação, e a valorização de profissionais trans em posições de liderança.
Além disso, a carta incentiva que festivais e casas de shows adotem políticas explícitas de respeito à identidade de gênero, incluindo o uso correto de pronomes e a oferta de banheiros neutros.
Outro eixo relevante do documento é o estímulo à contratação ativa de pessoas trans e não binárias, considerando as barreiras históricas de acesso a oportunidades profissionais. A carta também propõe que editoras, selos e distribuidoras priorizem o lançamento de artistas trans e ampliem o acesso a recursos de desenvolvimento de carreira, como mentorias e financiamentos.
As três versões publicadas da carta (EUA, Canadá e UE) compartilham os mesmos princípios-base, com adaptações conforme as legislações locais. A intenção de Saskhia Menendez é que o documento possa futuramente ser replicado em outros países. No Brasil, a realidade de pessoas trans na música ainda enfrenta múltiplos obstáculos.
Brasil lidera ranking global de violência contra pessoas trans
A publicação da carta ocorre em um momento de debates acalorados no Reino Unido após uma decisão da Suprema Corte sobre direitos de pessoas trans, que mobilizou diversos artistas.
No Brasil, o contexto é ainda mais alarmante. O país lidera o ranking mundial de assassinatos de pessoas trans pelo 15º ano consecutivo, segundo relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Em 2023, foram 135 mortes violentas de pessoas trans no país — um aumento de 34% em relação ao ano anterior.
Além da violência física, a exclusão social e profissional também marca o cotidiano da população trans brasileira. Um estudo da Fundação Oswaldo Cruz revelou que 90% das pessoas trans estão na informalidade ou desempregadas, e apenas 0,02% têm acesso ao ensino superior. Esses dados evidenciam os desafios enfrentados também no campo artístico, onde a presença de pessoas trans em cargos de visibilidade ou comando ainda é rara.
Apesar disso, artistas como Linn da Quebrada, Jup do Bairro e Mc Xuxu têm conquistado espaço e mostrado que é possível subverter o cenário, mesmo com pouco apoio estrutural. Ainda assim, a ausência de políticas públicas e o preconceito no mercado musical dificultam a consolidação de trajetórias mais diversas e sustentáveis.
Próximos passos e impacto esperado

A Trans Charter se propõe como um instrumento de transformação não apenas simbólica, mas prática. Ao mobilizar empresas do setor musical a aderirem formalmente ao compromisso com a diversidade, a carta pode funcionar como um guia de referência internacional para políticas de equidade de gênero.
Saskhia Menendez destaca que a adesão deve vir acompanhada de transparência e planos de ação mensuráveis.
“Não se trata de assinar um documento e continuar com as mesmas práticas. A indústria precisa se comprometer com mudanças reais e monitoráveis”, afirma a consultora em entrevistas recentes.
Para que o Brasil avance nesse debate, uma possibilidade é a adaptação do Trans Charter à realidade local, com foco em políticas afirmativas, proteção de artistas e apoio à formação de redes de profissionais trans em todos os elos da cadeia produtiva da música. A articulação com coletivos, instituições culturais e representantes do setor é apontada como fundamental para a criação de uma versão brasileira do documento.
Com o lançamento da carta, a expectativa é que agentes do mercado se mobilizem para promover um setor mais inclusivo e diverso. A música, como linguagem universal, pode e deve ser também um espaço de acolhimento, respeito e afirmação para todas as identidades.
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