The Velvet Sundown escancara dilemas sobre IA e remuneração no streaming

The Velvet Sundown surge com mais de 500 mil ouvintes mensais e escancara dilemas sobre transparência, economia e ética no uso da inteligência artificial.
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Nathália Pandeló
The Velvet Sundown
The Velvet Sundown (Crédito: Reprodução)

A banda The Velvet Sundown apareceu de forma repentina em junho de 2025, com dois álbuns lançados em sequência e presença em playlists de destaque no Spotify. Sem gravadora, sem histórico anterior, sem turnê e com imagens geradas por inteligência artificial, o grupo passou a ser visto como um experimento algorítmico bem-sucedido e silencioso.

Apesar da ausência de provas concretas de sua existência física, a The Velvet Sundown se diz real e acumulou mais de 550 mil ouvintes mensais na principal plataforma de streaming, levantando questionamentos sobre como esse tipo de conteúdo entra no sistema de recomendação e recebe remuneração sem ser identificado como gerado por IA.

O caso The Velvet Sundown

A descoberta da possível origem artificial da banda começou em fóruns do Reddit, quando usuários notaram a presença de músicas desconhecidas em suas playlists semanais de recomendação. Ao clicar no nome do grupo, o estranhamento aumentava: biografias genéricas, imagens artificiais com aparência suavizada e integrantes com nomes como “Gabe Farrow” e “Orion ‘Rio’ Del Mar”, que não possuem qualquer histórico online.

Inicialmente, a The Velvet Sundown contava com cerca de 300 mil ouvintes mensais. Com a viralização da suspeita de que se tratava de um projeto gerado por IA ao longo dos últimos dois dias, o número ultrapassou os 550 mil ouvintes, e segue crescendo. 

Hoje, ao buscar por “Velvet” no Spotify, o algoritmo da plataforma já sugere automaticamente “Sundown”, mesmo diante de bandas consolidadas como The Velvet Underground, com 2,8 milhões de ouvintes, ou Velvet Revolver, com 1,1 milhão.

Além disso, a The Velvet Sundown lançou dois álbuns em apenas 15 dias (“Floating on Echoes” e “Dust and Silence”) e tem um terceiro previsto para julho. As canções entraram em playlists como “Descobertas da Semana” e “Vietnam War Music”, o que aumenta ainda mais sua exposição. Até o momento, não há selo, produtor ou créditos externos.

The Velvet Sundown comemora o sucesso dos dois primeiros álbuns comendo hambúrgueres
The Velvet Sundown comemora o sucesso dos dois primeiros álbuns comendo hambúrgueres (Crédito: Reprodução)

Após a repercussão das suspeitas de ilegitimidade, um perfil que se identifica como oficial da The Velvet Sundown passou a rebater as críticas. No X, foi postado um suposto recibo de royalties da distribuidora DistroKid, com mais de US$10 mil recebidos.

O avanço da IA e a falta de transparência nas plataformas

Não há dúvidas de que a IA cresce rapidamente, mas a regulação e a rotulação ainda caminham atrás. Entre as grandes plataformas, apenas a Deezer passou a identificar conteúdos gerados por inteligência artificial. Segundo dados divulgados pela própria empresa em abril de 2025, cerca de 20 mil faixas automatizadas são enviadas ao serviço diariamente, o equivalente a 18% do total de uploads.

Enquanto isso, o Spotify, que também abriga a discografia da The Velvet Sundown, não exige nenhum tipo de identificação. O algoritmo da plataforma continua indicando esse tipo de banda em playlists populares, sem alertar os usuários sobre a origem automatizada do conteúdo.

Concorrência desigual com artistas humanos

Não é difícil entender por que essa descoberta movimentou as redes sociais e gerou debates intensos entre músicos, produtores e profissionais da indústria. A ideia de que projetos gerados por inteligência artificial estejam ocupando espaços antes disputados por artistas reais acendeu um sinal de alerta em todo o setor.

Artistas reais lidam com altos custos de produção, gravação, mixagem, arte gráfica, distribuição e, em muitos casos, shows e marketing. Já uma banda como a The Velvet Sundown pode ser criada em minutos por ferramentas como Suno ou Udio, sem despesas com estúdio, músicos ou equipamentos.

Apesar disso, o modelo de remuneração do streaming trata ambos da mesma forma. Com base na divisão pró-rata, o Spotify distribui cerca de 70% de sua receita para os detentores de direitos, o que se traduz em uma média de US$ 0,003 a US$ 0,005 por stream. Assim, projetos gerados por IA disputam diretamente a mesma fatia do bolo financeiro que artistas com trajetórias reais.

Projeções de perda para as indústrias criativas

Inteligência artificial - IA
Crédito: Freepik

Segundo um relatório da CISAC (Confederação Internacional de Sociedades de Autores e Compositores), as indústrias criativas devem sofrer uma perda de até 24% em suas receitas até 2028 por conta do uso massivo de inteligência artificial não regulada. No caso específico da música, isso pode representar um prejuízo superior a €10 bilhões nos próximos quatro anos.

O mesmo estudo, divulgado em Paris em dezembro de 2024, alerta que trabalhadores do setor musical (incluindo compositores, intérpretes, produtores e outros profissionais) podem perder quase um quarto de sua renda até 2028. A estimativa acompanha o crescimento acelerado do mercado de IA generativa, que deve saltar de €3 bilhões para €64 bilhões ao ano nesse período. A CISAC enfatiza que, sem a intervenção de políticas públicas, os direitos e as receitas dos criadores serão drasticamente reduzidos.

Os sinais de que a IA já está entre nós

Além da The Velvet Sundown, outras “bandas fantasmas” vêm aparecendo em plataformas com números expressivos. Um dos exemplos mais citados é o do projeto The Devil Inside, que ultrapassou 1,6 milhão de reproduções em poucas semanas, também sem qualquer rastro verificável de existência física.

Relatórios de investigação apontam que há inclusive suspeitas de uso de bots para inflar esses números e incluir músicas geradas por IA em playlists de alto alcance. Isso levanta outra preocupação: a possível manipulação das recomendações para favorecer conteúdos mais baratos de manter.

Caminhos possíveis para o ecossistema da música

A rotulação de conteúdo automatizado, como já implementado pela Deezer, é vista por especialistas como um primeiro passo importante. Outro debate em curso é a adoção de modelos de pagamento centrados no usuário (user-centric), em que o dinheiro de cada assinante vai diretamente para os artistas que ele escutou, em vez de ser diluído na base total de streams.

Além disso, artistas e entidades da indústria cobram ações mais firmes de plataformas como o Spotify, Amazon Music e Apple Music. As medidas incluem filtros para impedir manipulações com bots, regras mais claras para o uso de IA e garantias de remuneração justa para obras autorais.

Um debate que vai além da tecnologia

A existência de bandas como a The Velvet Sundown não é um problema apenas técnico ou mercadológico. Ela levanta dilemas éticos profundos sobre autoria, autenticidade, transparência e sustentabilidade cultural. Enquanto a IA oferece novas possibilidades criativas, também testa os limites do que se entende por arte e do valor que se dá à experiência humana por trás da música.

O desafio não é impedir o avanço da inteligência artificial, mas garantir que ele aconteça de forma equilibrada, com regras claras, justiça na remuneração e respeito ao trabalho dos criadores. Sem isso, o risco é que a música se torne apenas mais um produto automatizado num mar de conteúdo indistinto.

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