A desigualdade de gênero nos festivais brasileiros de música permanece uma realidade evidente para as mulheres na música, mesmo após quase uma década de esforços para ampliar a representatividade nos palcos.
Essa é a conclusão do estudo realizado por Thabata Lima Arruda, publicado pela revista Zumbido do Selo Sesc, que analisou 42 festivais de música entre 2016 e 2024. A pesquisa contabilizou 6.954 atos musicais e 6.667 artistas individualmente, revelando que mulheres seguem sendo minoria tanto entre os nomes do line-up quanto entre os músicos que de fato sobem ao palco.
Desde 2016, a presença de atos compostos exclusivamente por mulheres passou de 11% para 35,6% em 2024, com pico de 40,9% em 2023. Apesar do crescimento, Thabata alerta:
“Embora ainda represente um avanço expressivo em relação aos anos anteriores, a oscilação mostra que, sem ações consistentes e planejamento a longo prazo, os ganhos em representatividade não se sustentam”.
A queda registrada entre 2023 e 2024 acende um sinal de alerta sobre a estabilidade dessas conquistas. Mesmo com festivais que apostaram em diversidade, como o Rock The Mountain, que teve 98% de atos femininos em 2023, o cenário geral ainda mostra oscilações. No ano seguinte, o mesmo festival recuou para 45% de participação feminina.
A estrutura da pesquisa
A metodologia do estudo manteve a base de levantamentos anteriores realizados por Thabata desde 2019, com a análise de festivais de diferentes regiões e portes. A seleção exigiu que os eventos tivessem ao menos quatro edições realizadas, o que garantiu uma amostragem mais estável. Entre os critérios, o levantamento excluiu atrações não musicais, shows-surpresa, grandes formações sem integrantes identificáveis, e artistas sem registros públicos.
Além da contagem de atos musicais, a partir de 2020 passou-se também a contabilizar os integrantes individuais das bandas e duos. A diferença entre os dois recortes é significativa: em 2024, enquanto atrações exclusivamente femininas chegaram a 35,6%, a participação real de mulheres foi de apenas 26,7%, considerando a formação completa das bandas.
Para Thabata, essa distinção é crucial:
“Ao individualizar a contagem de artistas, a disparidade de gênero se torna ainda mais evidente do que na análise baseada apenas em atos musicais”.

Impacto dos editais e festivais emergentes
Durante a pandemia de COVID-19, os festivais sofreram uma queda drástica. Em 2020, apenas 13 eventos foram realizados, muitos em formato online. Ainda assim, houve crescimento proporcional de artistas mulheres, impulsionado por editais emergenciais como os da Lei Aldir Blanc, que premiaram projetos com critérios de diversidade.
Em paralelo, novos festivais surgiram após 2022 com propostas mais diversas. O destaque vai para o Presença Festival, no Rio de Janeiro, que atingiu 100% de participação feminina em 2024. Em contraste, o Plantão Festival, voltado ao rap, teve apenas 10,5% de mulheres em sua segunda edição.
Festivais de rock ainda apresentam maior resistência

A pesquisa dedica uma seção específica à análise de festivais com histórico de baixa representatividade feminina. Eventos como o Abril Pro Rock, João Rock, Porão do Rock e Goiânia Noise seguem com números preocupantes. Em 2024, o Abril Pro Rock não contou com nenhuma mulher no line-up, repetindo um padrão observado em anos anteriores.
Mesmo quando há iniciativas pontuais, como noites temáticas ou palcos “delas”, a mudança estrutural não se consolida. O João Rock, por exemplo, criou o palco Aquarela em 2023, o que elevou a presença feminina para 32%. No entanto, o palco principal continuou dominado por homens, com apenas duas mulheres escaladas para o line-up de 2024.
Para Thabata, esses movimentos não são suficientes:
“A criação de palcos específicos ou campanhas de marketing voltadas à equidade de gênero parecem funcionar mais como estratégias de ativação de marca do que como compromissos reais com a inclusão”.
A presença negra e não-binária
O estudo também ressalta a baixa presença de pessoas não-binárias (0,2% dos integrantes em 2024) e de mulheres negras, que enfrentam uma sub-representação ainda mais acentuada. O Presença Festival é uma exceção, tendo priorizado artistas negras em todas as edições.
Para garantir a correta classificação de gênero, a pesquisadora adotou critérios baseados na identidade de gênero autodeclarada e nos pronomes utilizados pelos artistas, evitando suposições e respeitando a diversidade.

Direitos autorais e visibilidade
O levantamento traz dados do relatório “Mulheres na Música – Edição 2025”, elaborado pelo Ecad, que indicam que apenas 10% dos titulares nas associações de gestão coletiva são mulheres. E, entre os 100 autores com maior rendimento, somente 5% eram mulheres em 2024.
Esses dados mostram que a desigualdade atinge não só os palcos, mas também a arrecadação de direitos autorais e a permanência profissional na música.
Propostas para mudança estrutural

O estudo encerra com uma reflexão crítica sobre o papel dos festivais dentro da cadeia produtiva da música. Para Thabata, não basta incluir mulheres pontualmente:
“Criar line-ups que não sejam apenas diversos, mas verdadeiramente inclusivos, vai muito além de uma ação simbólica ou de marketing”.
Ela defende um compromisso de longo prazo que envolva curadorias diversas, metas públicas de representatividade, e acompanhamento de dados com transparência.
“É urgente que se ofereçam, não apenas visibilidade pontual, mas também os espaços para que possam exercer essa profissão a longo prazo”.
Apesar de reconhecer os avanços, Thabata conclui:
“É importante celebrar o copo meio cheio, mas não esquecer que ele segue meio vazio há muito tempo e que estamos com sede”.
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