Quadrinhos e música se cruzam em novas narrativas de Marcelo Bonfá, Camilo Solano e Daniel Lopes

Linguagem visual amplia as possibilidades de expressão de músicos e quadrinistas, que começam a explorar projetos conjuntos, autobiografias em quadrinhos e álbuns ficcionais.
Foto de Nathália Pandeló
Nathália Pandeló
Marcelo Bonfá, Camilo Solano e Daniel Lopes
Marcelo Bonfá, Camilo Solano e Daniel Lopes (Crédito: Divulgação)

Apesar de parecerem universos distintos, música e quadrinhos vêm se encontrando em colaborações que exploram o ritmo, o visual e a narrativa como formas complementares de expressão. 

Um exemplo que marcou a história é a capa do álbum Cheap Thrills, segundo disco da banda Big Brother and the Holding Company, lançado em 1968, com Janis Joplin nos vocais. A arte foi assinada por Robert Crumb, nome central do movimento underground comix, e ajudou a consolidar a estética visual da época. 

No Brasil, o quadrinista Rafael Grampá assinou capas para o músico Gui Amabis, e o álbum Macumba Stereo da Nação Zumbi contou com um encarte em quadrinhos ilustrado por Shiko, referência na cena nacional. Em 2025, o cantor Kevin Johansen e o ilustrador Liniers reprisaram sua longeva parceria por várias cidades brasileiras, em um espetáculo onde a música e desenho ao vivo dividiram o palco, reforçando como essas linguagens podem se complementar de forma criativa.

Marcelo Bonfá transforma memórias em imagens

A relação entre música e quadrinhos ganha agora um novo capítulo com Minha Banda Preferida de Todos os Tempos, autobiografia gráfica de Marcelo Bonfá, baterista e fundador da Legião Urbana. O projeto, que está em pré-venda pela Brasa Editora, reúne texto e ilustrações assinadas pelo próprio Bonfá, criadas entre uma turnê e outra. A obra marca sua estreia como autor de uma narrativa longa no formato HQ, embora sua ligação com as artes visuais venha desde os primeiros anos da banda.

“Os quadrinhos apresentam uma imagem definida visualmente, não há margem para interpretações. Ela trabalha com outro sentido, o visual. Mas ela também desperta sensações que serão processadas em quem vê. Já ouvi algo sobre a música e a imagem serem processados em áreas distintas e opostas no nosso cérebro, tanto para quem faz quanto para quem aprecia”, explica Bonfá. 

Para ele, essa diferença de linguagem abriu caminho para experimentar novos modos de contar sua história. 

“Vejo ritmo em tudo, então eu dei o andamento nesta história do início ao fim. Fazer um livro de HQ exige uma noção que é intrínseca da HQ, que é a arte de sintetizar histórias em desenhos”.

Página da autobiografia em quadrinhos de Marcelo Bonfá
Página da autobiografia em quadrinhos de Marcelo Bonfá (Crédito: Divulgação)

A HQ remonta episódios da trajetória pessoal e profissional do músico, incluindo bastidores de palco e momentos marcantes com a Legião Urbana. 

“Esta é a história da minha vida e que é parte inseparável da história de algumas pessoas. Muitas cenas se passam no palco e por mais que meus desenhos não se fundamentem em movimentos apenas, a história em quadrinhos tem que ter um pouco deste movimento. Basta escrever a primeira palavra e as pessoas já vão sair cantando, isso tem movimento”.

Bonfá afirma que o objetivo do livro não foi necessariamente aproximar novos públicos de sua obra, mas reconhece que essa interseção pode cumprir esse papel. 

“Este não era o meu objetivo, mas é inegável que isso pode acontecer, principalmente se as pessoas gostarem do que vão ver no meu livro”.

A música como ritmo visual

Camilo Solano autografa na CCXP 24
Camilo Solano autografa na CCXP 24 (Crédito: Divulgação)

No cenário brasileiro atual, poucos artistas exploram de forma tão pessoal a conexão entre música e quadrinhos quanto Camilo Solano. Quadrinista premiado e também músico, ele vê nas duas linguagens formas complementares de narrativa, ambas atravessadas pelo ritmo e pela emoção.

“Os quadrinhos e a música são duas mídias que dialogam com o leitor à partir do ritmo. O ritmo da música é mais óbvio, pois é sonoro. Nos quadrinhos, o ritmo é visual. É em cada quadro, dependendo da quantidade e tamanho do quadro em cada página, há um ritmo intrínseco na intenção. Se eu quero fazer uma cena ligeira ou uma cena lenta nos quadrinhos, diferente da literatura que teria que escrever esse tempo passando, nos quadrinhos você transforma esse ritmo mais lento em arte visual e consegue passar essa ritmo sem uma única palavra e também sem um único som. É fascinante”, explica.

Camilo, que já lançou o single “Desculpa o Áudio” acompanhado por uma HQ e um clipe híbrido de animação e live action, vê as duas linguagens como partes do mesmo impulso criativo. 

“As minhas obras tanto nos quadrinhos como na música nascem da mesma maneira. Conforme vão sendo lapidadas, eu vou entendendo qual a melhor maneira de contar a história. Amo sonoridade poética. Brincar com palavras é uma das coisas que mais gosto de fazer”.

Ele acredita que os quadrinistas-músicos ainda são vistos com certo estranhamento, mas defende que essa fronteira pode ser cada vez mais diluída, com a ajuda de nomes como Tainan Rocha, compositor, quadrinista e ilustrador, e Gabriel Arrais, guitarrista e roteirista. 

“Existem muitos quadrinistas músicos. Mas vejo pouco dessa movimentação mais pro lado da música. Aparentemente, a maioria considera como hobby mesmo. Para mim, a música e os quadrinhos são minha vida e disso vou seguir vivendo”.

Mostrando que o mundo dá voltas, Camilo Solano viria a ser apadrinhado no mundo dos quadrinhos por ninguém menos que Robert Crumb, justamente o autor da icônica capa de Cheap Thrills.

Criando mundos musicais visuais

Capa de álbum criada para o livro 100 Discos Para Conhecer Aguardela
Capa de álbum criada para o livro 100 Discos Para Conhecer Aguardela (Crédito: Divulgação)

No caso de Daniel Lopes, a conexão entre música e quadrinhos se manifesta em escala total. 100 Discos para Conhecer Aguardela, criado com Raphael Salimena, é uma enciclopédia visual fictícia que narra a história de uma cena musical inteira por meio de capas e contracapas de LPs inventados. 

“Inicialmente, embarquei no projeto como editor, justamente por gostar muito de música, de diversos gêneros, e ser um colecionador de discos. Mas logo eu estava dando algumas ideias, até que achamos melhor criar a história toda juntos. Então passei a ser corroteirista. Nós dois também somos fascinados por histórias e lendas da música, por biografias de artistas, pelos encartes dos discos que contam muita coisa, então por que não inventar um mundo fictício que ecoe nossa realidade, mas também permite qualquer grau de fantasia?”, conta.

A obra reúne 100 discos de artistas fictícios como Madame Oneide e a banda Selvagens da Madrugada, construídos com uma riqueza de detalhes que ecoa o realismo fantástico de séries como Twin Peaks

“A pergunta sempre foi: o que mostrar e o que não mostrar para tornar a história desse lugar fascinante e instigante, como são as carreiras de alguns dos nossos ídolos. Tentar gerar no leitor a vontade de voltar a revistar Aguardela, pois tem algo mais ali para se descobrir a cada nova olhada. Ao mesmo tempo, queremos que os leitores aproveitem o passeio por Aguardela sem necessariamente ter bagagem musical parecida com a minha ou a do Salimena. O livro não é um exercício de caça às referências, mas sim um quebra-cabeça no qual todas as peças para montá-lo estão ali nas páginas”, diz Lopes.

O livro já começa a gerar novas criações fora das páginas — inclusive musicais. 

“Um leitor me enviou uma música que fez para a letra de um dos discos do nosso livro; também já recebi uma poesia baseada na vida de uma das personagens e a ideia de um livro biográfico sobre um dos artistas fictícios”, conta. “Isso já está acontecendo”, resume Lopes, referindo-se à capacidade do projeto de inspirar outros artistas a criarem obras derivadas.

Além disso, o livro traz uma faixa inédita gravada por Russo Passapusso, vocalista do BaianaSystem, que também assina o prefácio. Para Daniel Lopes, o potencial de colaboração entre músicos e quadrinistas ainda está longe de ser esgotado. 

“Adoro as dobradinhas Janis Joplin/Robert Crumb, Jethro Tull/Dave Gibbons, Gui Amabis/Rafael Grampá, Wilco/Joan Cornellà, Zappa/Tanino Liberatore, La Máquina de Hacer Pájaros/Crist, Marisa Monte/Carlos Zéfiro… só para citar alguns. Mas pensando em encartes, clipes, identidade visual, a coisa pode ir muito longe”.

Camilo Solano concorda e reforça que a conexão precisa ser construída com base no conceito de cada artista. 

“O músico tem que entender o estilo do quadrinista e ver se ele faz sentido no seu trabalho. O Brasil tem uma infinidade de estilos maravilhosos de desenhistas. A gente é diverso e isso torna a arte brasileira a melhor!”.

Enquanto novos projetos surgem, o que se desenha é um caminho promissor entre páginas e partituras, capas e melodias, quadrinhos e sons que não precisam mais andar em paralelo. Eles podem, e devem, se misturar.

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