MM Explica: Prisão de sertanejo por fraude expõe submundo das “fazendas de streams”

"Fazendas de streams": esquema usava bots e perfis falsos para inflar números e gerar lucros ilegais
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Nathália Pandeló
Alex Ronaldo - cantor foi preso por gerir fazendas de streams
Alex Ronaldo (Crédito: Divulgação)

Em dezembro de 2024, uma operação do Ministério Público desmantelou um esquema que usava perfis falsos e bots para roubar músicas e inflar números de reproduções em plataformas de streaming – uma prática conhecida como “fazendas de streams”. O principal acusado, o cantor sertanejo Ronaldo Torres de Souza, de 46 anos, foi preso preventivamente em Passo Fundo (RS) em 05/12 após confessar o crime. Ele se tornou a primeira pessoa no Brasil a ser detida por fraude envolvendo streaming musical. A investigação revelou detalhes que chocaram o mercado e expuseram a fragilidade dos sistemas de controle das plataformas digitais.

O esquema não era limitado ao Spotify, mas essa plataforma foi o principal alvo da operação e das investigações. Ronaldo utilizava agregadoras para publicar as músicas em diferentes serviços de streaming. Essas empresas atuam como intermediárias, enviando as faixas para diversas plataformas digitais, o que sugere que o esquema poderia ter alcançado outros serviços além do Spotify. Contudo, a maior parte das denúncias e prejuízos relatados concentrou-se na plataforma líder do setor.

Como o caso começou

A primeira denúncia sobre o esquema de “fazendas de streams” veio à tona em abril de 2024, quando uma reportagem do UOL revelou a existência de 209 perfis falsos no Spotify, associados a 444 músicas roubadas e reproduzidas cerca de 28 milhões de vezes. Essas músicas geraram lucros ilícitos estimados em R$ 6 milhões. Entre os compositores prejudicados estava Murilo Huff, que teve obras usadas sem autorização.

A investigação começou a ganhar força quando o Ministério Público de Goiás, por meio do CyberGaeco, grupo especializado em crimes digitais, decidiu aprofundar o caso. Os promotores descobriram que o esquema era comandado por apenas uma pessoa: Ronaldo Torres, natural de Rondônia e com mais de 30 anos de carreira no sertanejo, mas sem grande destaque no cenário nacional.

Murilo Huff foi um dos artistas prejudicados pelo esquema de
Murilo Huff foi um dos artistas prejudicados pelo esquema de “fazendas de streams” (Crédito: Divulgação)

O funcionamento do esquema das “fazendas de streams”

Ronaldo utilizava versões preliminares de músicas, conhecidas no meio como “guias”, enviadas pelos compositores a artistas para avaliação. Em vez de comprar ou negociar os direitos de gravação, ele alterava o nome das faixas e as publicava em perfis falsos, utilizando documentos forjados para cadastrá-los. As capas de álbuns eram genéricas e os artistas inventados, mas os royalties gerados pelas músicas eram direcionados para sua conta via Pix.

Além de roubar músicas, Ronaldo desenvolveu um sistema para maximizar seus ganhos. Ele operava uma “fazenda de streams”, localizada em uma mansão de luxo em Pernambuco. No local, 21 computadores rodavam bots que simulavam plays contínuos, criando a impressão de que milhares de pessoas estavam ouvindo as faixas. O sistema era tão sofisticado que conseguia simular a reprodução simultânea por até 2.500 usuários, aumentando exponencialmente o número de reproduções e, consequentemente, os lucros.

A operação do Ministério Público

A operação foi batizada de “Desafino”. Agentes do Ministério Público invadiram a mansão de Ronaldo e flagraram a “fazenda de streams” em pleno funcionamento. Os equipamentos usados para o esquema foram apreendidos, assim como carros de luxo, imóveis e criptomoedas. O valor total dos bens confiscados chegou a R$ 2,3 milhões.

Durante a ação, o MP também encontrou evidências de uma evolução no golpe. Além de músicas roubadas, Ronaldo começou a usar faixas criadas por inteligência artificial. Isso tornava o esquema ainda mais complexo, dificultando a identificação das fraudes. Apesar disso, a perícia realizada nos notebooks do cantor revelou mais de 3.900 “guias” armazenadas, indicando que a fraude era muito maior do que o inicialmente estimado.

Repercussão no mercado musical

O impacto do caso foi significativo. Especialistas apontam que o esquema de Ronaldo expôs um problema sistêmico na indústria do streaming. É de amplo conhecimento que o uso de “fazendas de streams” é uma prática comum no mercado musical, inclusive por grandes artistas e gravadoras, para inflar números e criar uma falsa percepção de sucesso.

Segundo a consultoria canadense Beatdapp, 10% dos plays em plataformas de streaming no mundo são artificiais, desviando cerca de US$ 2 bilhões de um total de US$ 17 bilhões gerados anualmente pelo setor. O modelo de remuneração do Spotify, que distribui receitas com base no número de reproduções, incentiva essas fraudes, pois diminui os ganhos de artistas legítimos.

Bruna Campos, representante da Início – União Brasileira de Compositores no Mato Grosso do Sul, publicou um vídeo comemorando o resultado da operação que quebrou um ciclo de roubos de guias já conhecido e denunciado por ela. Bruna reforçou que a prisão de Ronaldo não significa que os compositores devem baixar a guarda — e sim, manter suas composições sob seu controle e, sob hipótese alguma, compartilhar com desconhecidos que potencialmente podem pertencer à equipe de um artista. 

A UBC também alertou para a necessidade de maior fiscalização por parte das plataformas e das agregadoras, empresas que funcionam como intermediárias entre músicos e serviços de streaming.

O que se sabe sobre Ronaldo

Ronaldo Torres, conhecido atualmente como Alex Ronaldo, começou sua carreira aos 17 anos, cantando em bares em São Paulo. Durante os anos 2000, integrou o grupo Bonde do Sertanejo, que teve participações em programas de TV como o de Fausto Silva e Raul Gil, mas nunca alcançou grande sucesso.

Em 2015, ele chegou perto do estrelato com a música “Sexta-feira sua linda”, repostada por Neymar e Alexandre Pires, mas o sucesso foi passageiro. Após a dissolução de sua dupla sertaneja, Alex e Ronaldo, em 2017, ele seguiu em carreira solo, mas enfrentou dificuldades para se firmar no mercado. 

As consequências

Ronaldo foi liberado da prisão preventiva e aguarda julgamento, mas pode enfrentar até 10 anos de prisão se condenado pelos crimes de estelionato, falsa identidade e violação de direitos autorais. A denúncia do Ministério Público também levou à exclusão de 101 dos 209 perfis falsos identificados no Spotify. No entanto, muitos outros continuam ativos, o que reforça a necessidade de maior controle sobre o setor.

A operação “Desafino” chamou atenção para a pirataria digital no Brasil. Embora o caso tenha gerado repercussão, especialistas alertam que a prática de inflar números no streaming ainda está longe de ser erradicada. Muitos artistas e empresas continuam utilizando bots para obter vantagens, enquanto as plataformas enfrentam dificuldades para monitorar e coibir essas fraudes. A indústria musical, puxada pelo sertanejo, movimentou R$ 2,8 bilhões no Brasil em 2023, mas casos como o de Ronaldo mostram que nem todo esse sucesso é real.

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