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Idealismo no artístico e olho no mercado: o segredo das duas décadas da gravadora e editora Deck, fundada por João Augusto

Nosso colunista Leo Feijó escreve sobre a história da Deck que reúne idealismo e uma incrível capacidade de realização, numa narrativa rara na indústria fonográfica brasileira.
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Redação

Os mais de 3 milhões de assinantes do canal da gravadora Deck no Youtube ganharam um presente há poucos dias: a exibição completa do documentário “Tudo pela Música (Os 20 Anos da Deck)”, dirigido por Daniel Ferro.

Uma história que reúne idealismo e uma incrível capacidade de realização, numa narrativa rara na indústria fonográfica brasileira. Apontado como um dos principais diretores artísticos em atividade no Brasil a partir da virada dos anos 1970 para os anos 1980, João Augusto criou em 1998 o embrião da Deck. Um empreendimento que seria gravadora, editora e que possibilitou novas aventuras nos anos 2000, como a recuperação da fábrica da Polysom – então a última da América Latina – e até o lançamento de fitas cassete.

No artístico, João começou a carreira trabalhando com nomes como Zizi Possi, Marcos Sabino, Marina Lima e Angela Rô Rô. Ele faz uma síntese dessa trajetória depois desse período nas majors: “Eu sou um produto que saiu da multinacional e há 20 anos tem uma gravadora e um editora, que é a Deck, e em 2009 reativamos a fábrica de vinil Polysom”.

Os artistas lançados pela Deck indicam que a diversidade de gêneros musicais é o caminho. Pitty, Cachorro Grande, Matanza e Dead Fish figuram ao lado de Falamansa,Grupo Revelação, Sorriso Maroto, Naldo, Fernanda Takai, Roberta Campos, Teresa Cristina, Elza Soares, João Donato, Arlindo Cruz,Nando Reis, Alceu Valença e Gabriel Elias, entre outros– muitos deles venderam milhões de cópias pela Deck ainda na era do CD e seguem com carreiras consolidadas no streaming. Outros chegaram recentemente, em busca de um tipo de relacionamento que não seria possível numa companhia multinacional.

A Deck iniciou oficialmente suas atividades como gravadora em 1998. Após três anos tendo sua distribuição feita pela Universal Music e depois pela Abril Music – quando lançou Los Hermanos – em 2001 tornou-se 100% independente, ao inaugurar sua própria distribuição no Rio de Janeiro. Mônica Ramos, casada com João Augusto e braço direito na condução da empresa, lembra no documentário a visão estratégica – e um fator “sorte”, segundo ela – de terem incluído os serviços de editora musical. A editora da Deck administra mais de 10 mil obras e administra cerca de 50 outras editoras. Com isso, superou o período da pirataria do disco físico, depois do Napster no mundo digital, e a empresa é hoje autossustentável. Mesmo em períodos de instabilidade.

O documentário “Tudo pela Música” é um prazeroso passeio pelo mercado musical independente nas últimas duas décadas, e foi lançado em 2019 no Festival In-Edit Brasil – Festival Internacional do Documentário Musical. Entre os entrevistados estão artistas, executivos das majors, do rádio, da MTV. O filho Rafael Ramos também teve papel importante nessa trajetória da Deck. Como produtor musical, Rafael segue a filosofia da família: um olho no artístico e outro no mercado.

– A Deck é uma gravadora independente que é sobrevivente hoje num mercado que alterna bons e maus momentos e se recuperou graças à música digital. Que já teve um formato que foi o download e agora é voltada para o streaming. Nós vivemos isso um pouco mais cedo porque num dado momento a gravadora buscou isso antes das majors, porque eles tinham muitos problemas com autorizações do exterior. E quando a coisa virou estávamos mais preparados. Eu comecei na música quando tinha cassete e LP, vi o cassete morrer, vi o CD e o DVD nascerem e morrerem. A música digital nasce e o vinil do nada apareceu como a melhor opção de formato físico hoje – defende João Augusto.

No universo de gravadoras independentes, a Deck cresceu com recursos próprios, sem investidores, sem grupos econômicos. Faturou alto com alguns artistas do samba e do pagode e assim criou uma estrutura com sede própria, estúdio e equipe de marketing no Rio. “O fato é que éramos os únicos independentes mesmo. Não tinha nem banco, nem vale refeição, vendíamos o almoço para pagar a janta”, lembra João. “Produzimos com os nossos próprios esforços, e não tínhamos de onde tirar dinheiro, era da própria gravadora”. Ao contrário de outras gravadoras, a Deck não adota o modelo de contrato 360 graus como exigência. Apesar disso, segue esse formato quando o artista solicita esse tipo de envolvimento no planejamento de shows e outros segmentos.

Em 2009 adquiriu a fábrica de vinil Polysom, situada em Belford Roxo (RJ), recriando a então única fábrica de vinil em toda a América Latina. Com o aumento da demanda pelo vinil, a Polysom hoje presta serviços a diversas gravadoras e artistas independentes. Lançou clássicos como uma caixa completa dos Mutantes, Jorge Ben, Chico Buarque, Banda Black Rio, entre outros, e também os vinis dos próprios artistas da Deck, como Pitty.

O segredo para resistir à montanha-russa da indústria fonográfica, aponta João Augusto, está na forma de fazer as coisas. “No formato tradicional de gravadora multinacional, o relacionamento e a paciência é algo que não existe mais, infelizmente. As gravadoras antes eram baseadas no artístico. Era o fundamento”, lembra. “Na antiga EMI, aqui no Rio, eram três estúdios. Várias histórias. Renato Russo, quebrando tudo, os Paralamas jogando ping-pong no estúdio. E na área interna do prédio os artistas conviviam. João Nogueira compondo música com Beto Guedes, era interessantíssimo”.

Como conciliar interesses comerciais com a visão artística? A paciência e o investimento no artista são o caminho, pelo menos na Deck. “O marketing, embora necessário, tem um problema sério: ele acha que pode vender qualquer artista. E o artístico não, parte do talento para desenvolver uma carreira. Como sou do artístico, vejo que esse fundamento se perde um pouco hoje. E termos econômicos, as gravadoras não têm paciência. A Roberta Campos, que estourou com a Deck, está com a gente há vários anos. O Naldo, quando estourou, estava com a gente há 3 anos. Essa paciência não existe mais. É a visão mais corporativa, voltada para resultados imediatos. Não se consegue desenvolver um artista assim. É muito difícil no Brasil. O que é uma pena. Para o formato de uma gravadora, é uma pena. Hoje não tem mais um relacionamento. Esse um diferencial da Deck”, conclui João Augusto.

Entre a aventura de fundar a gravadora e editora, a decisão de comprar a fábrica de vinil da Polysom “foi uma loucura” da qual ele diz se arrepender. Mas hoje se orgulha. “Viajei pelo mundo para conhecer outras fábricas. Aprendi química. Percebemos que a fabricação de vinil tinha números muito promissores, porque nem sempre constavam dos relatórios da Nielsen, porque é também um mercado de colecionador, é um mercado em que o artista vende nos shows, portanto nem sempre aparece nas estatísticas”, pondera.

“Até o Steve Jobs, inventor de parte desse mundo digital que vivemos, chegava em casa e ouvia um vinil. É algo incrível (…). Me chamavam de maluco na época e hoje estão me chamando de esperto. Mas eu ainda acho que sou meio maluco”.

Ele conta que levou pelo menos três anos até atingir uma boa qualidade nos vinis produzidos na fábrica. “É uma evolução constante, temos sempre algo a melhorar”. O mercado se desenvolve e evolui com a Deck e a Polysom.

Assista no canal da Deck no Youtube:

“Tudo pela música (Os 20 anos da Deck)” (Direção: Daniel Ferro)

 

 

leofeijo@esp.puc-rio.br
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Leo Feijó é jornalista, pesquisador e coordenador do Programa “Música & Negócios” do Instituto Gênesis da PUC-Rio. Criou diversas casas de shows no Rio e está vivendo em Londres, onde cursa o mestrado em Economia Criativa e Indústria da Música.

Contato: leofeijo@esp.puc-rio.br