Jards Macalé morre aos 82 anos e encerra seis décadas de atuação na música brasileira

Jards Macalé, nome central da modernização da MPB e colaborador de grandes artistas, morre no Rio de Janeiro.
Foto de Nathália Pandeló
Nathália Pandeló
Jards Macalé (Crédito: Leo Aversa)
Jards Macalé (Crédito: Leo Aversa)

O cantor e compositor Jards Macalé morreu aos 82 anos no Rio de Janeiro, onde estava internado para tratar problemas pulmonares. A informação foi confirmada pelo perfil oficial do artista, que relatou o último momento de lucidez após uma cirurgia. 

Ao longo de seis décadas, Macalé desenvolveu uma obra marcada pela experimentação, por parcerias fundamentais e pela atuação em diferentes áreas da criação artística.

A equipe publicou a nota completa nas redes sociais.

“Jards Macalé nos deixou hoje. Chegou a acordar de uma cirurgia cantando ‘Meu Nome é Gal’, com toda a energia e bom humor que sempre teve.Cante, cante, cante. É assim que sempre lembraremos do nosso mestre, professor e farol de liberdade. Agradecemos, desde já, o carinho, o amor e a admiração de todos. Em breve informaremos detalhes sobre o funeral. 

‘Nessa soma de todas as coisas, o que sobra é a arte.
Eu não quero mais ser moderno, quero ser eterno.”
— Jards Macalé”

Primeiros passos e construção de uma linguagem própria

Nascido na Tijuca, Jards Anet da Silva cresceu exposto a repertórios distintos, que mais tarde influenciariam sua formação. Entre referências eruditas presentes em casa e o samba do Morro da Formiga, o músico desenvolveu um vocabulário estético que atravessaria fases diversas da MPB. Frequentava Copacabana e Ipanema, onde formou vínculos com artistas decisivos para sua trajetória.

Nos anos 1960, aproximou-se de Vinicius de Moraes e Maria Bethânia, de quem foi diretor musical. A projeção nacional veio em 1969, com a apresentação de “Gotham City”, parceria com José Carlos Capinam, no Festival Internacional da Canção. O período marcou uma inflexão em sua carreira, colocando-o no centro de debates estéticos e comportamentais que atravessavam a música brasileira.

Embora não fosse integrante direto do tropicalismo, Macalé manteve colaboração constante com artistas do movimento. Sua atuação o colocou em diálogo frequente com Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Waly Salomão e Torquato Neto, contribuindo para a construção de linguagens que se tornaram referências.

Naquela época, o rótulo de “maldito” surgiu para classificar artistas que, durante a ditadura e no período seguinte, não se encaixavam no padrão estético e comercial dominante da MPB. Nomes como Luiz Melodia, Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção e Jards Macalé passaram a ser associados ao termo por seguirem caminhos autorais que não dialogavam com as estruturas mais tradicionais da indústria. A expressão se consolidou na imprensa para definir músicos essenciais, mas que enfrentaram dificuldade de circulação por escolhas estéticas, independência criativa ou posicionamentos que os afastavam do mercado mais amplo.

O impacto de “Transa” e a força de suas composições

No início dos anos 1970, durante o exílio de Caetano em Londres, Macalé assumiu a direção musical do icônico álbum “Transa”. Sua passagem pela região de Portobello Road ampliou seu repertório rítmico, com contato direto com a cultura jamaicana e o reggae, elementos que influenciaram arranjos e conduções do disco.

De volta ao Brasil, lançou o álbum “Jards Macalé”, de 1972, considerado um dos pontos altos de sua discografia. O trabalho reuniu rock, samba, blues, jazz e canção brasileira em faixas como “Hotel das Estrelas”, “Soluços”, “Movimento dos Barcos”, “Mal Secreto” e “Vapor Barato”, que se tornaram parte de repertórios de artistas como Gal Costa e Maria Bethânia.

A partir daí, consolidou presença constante em projetos de cinema, teatro e artes visuais. Assinou trilhas e participou de produções de Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade e Glauber Rocha. Nas artes visuais, colaborou com Lygia Clark e Helio Oiticica, relação retratada no curta “Macaléia”, lançado recentemente.

Atuação recente e circulação entre novas gerações

João Donato e Jards Macalé (Crédito: Leo Aversa)
João Donato e Jards Macalé (Crédito: Leo Aversa)

O trabalho de Macalé seguiu ativo até os últimos anos. Em 2019, lançou “Besta Fera”, projeto musical que dialogava com o contexto do período. Em seguida, divulgou “Coração Bifurcado”, com participações de Maria Bethânia e Ná Ozzetti, focado em diferentes dimensões afetivas.

O músico também seguiu se apresentando em palcos de grande porte. Uma das últimas aparições ocorreu no festival Doce Maravilha, no Rio de Janeiro, onde revisitou repertórios de seu disco de 1972 para um público formado majoritariamente por jovens, reforçando o alcance intergeracional de suas obras.

Em 2021, Jards Macalé selou sua primeira parceria discográfica com João Donato no álbum “Síntese do Lance”, gravado na região serrana do Rio de Janeiro e marcado pelo encontro entre o violão de Macalé e o piano de Donato. Produzido por Marlon Sette, Sylvio Fraga e Pepê Monnerat, o disco reúne dez faixas, entre elas “Côco Táxi”, única parceria inédita da dupla, além de composições próprias e colaborações com nomes como Ronaldo Bastos, Joyce Moreno, Fraga e Sette. 

A gravação foi descrita pelos músicos como um retorno ao essencial, reforçada pela capa que os mostra nus em meio à mata, simbolizando o despojamento do projeto. No repertório, Macalé apresentou “João Duke”, tema instrumental inspirado na admiração de Donato por Duke Ellington, enquanto Donato destacou as memórias e imagens que atravessaram sua criação musical e moldaram o clima expansivo do álbum.

Com uma carreira extensa, que atravessou movimentos musicais, trilhas cinematográficas, experimentações visuais e parcerias com poetas, Macalé acumulou registros que documentam transformações importantes da criação artística brasileira desde os anos 1960. Sua morte encerra uma trajetória de múltiplos desdobramentos, marcada por escolhas estéticas próprias e pela construção de um repertório que seguiu sendo apresentado, regravado e estudado por diferentes públicos.

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