D’Angelo redefiniu a música negra com uma obra curta, mas influente

Figura central do neosoul, o cantor e compositor norte-americano uniu tradição e modernidade, influenciando gerações de artistas até hoje.
Foto de Nathália Pandeló
Nathália Pandeló
D'Angelo se apresenta em um festival na Finlândia (Crédito: Roquai)
D'Angelo se apresenta em um festival na Finlândia (Crédito: Roquai)

O cantor, compositor e multi-instrumentista D’Angelo morreu na segunda-feira (14), aos 51 anos, após uma batalha contra o câncer no pâncreas. A informação foi confirmada por sua família, que o descreveu como alguém que “lutou com coragem e serenidade”. Nascido Michael Eugene Archer, na Virgínia, D’Angelo foi uma das figuras mais influentes da música negra contemporânea, mesmo com apenas três álbuns de estúdio lançados ao longo de três décadas.

Sua morte encerra uma trajetória que redefiniu o soul e o R&B, especialmente a partir da criação do neosoul, um movimento que resgatou o espírito da música dos anos 1970, incorporando o ritmo, o discurso e a estética do hip-hop. Entre o sucesso e os longos períodos de silêncio, D’Angelo construiu uma carreira marcada por intensidade, reclusão e uma busca constante por autenticidade.

Um novo capítulo para o soul americano

O primeiro álbum, “Brown Sugar” (1995), foi um ponto de virada para o R&B da época. Produzido majoritariamente pelo próprio D’Angelo, o disco misturava linhas de baixo marcantes, harmonias sofisticadas e batidas inspiradas no rap. O resultado era um som orgânico, distante do padrão radiofônico do período. O termo neosoul foi criado por seu empresário Kedar Massenburg justamente para definir aquele estilo que olhava para o passado, mas soava moderno.

Com letras de tom intimista e produção analógica, “Brown Sugar” abriu caminho para uma geração de artistas que seguiram a mesma direção. Erykah Badu, Maxwell, Lauryn Hill e Raphael Saadiq se tornaram parceiros e expoentes do gênero. O disco vendeu mais de um milhão de cópias e colocou D’Angelo entre as vozes mais promissoras da música norte-americana, aproximando o soul da linguagem do hip-hop sem diluir a essência do gênero.

O auge criativo com “Voodoo”

D'Angelo na capa do álbum Voodoo (Crédito: Divulgação)
D’Angelo na capa do álbum Voodoo (Crédito: Divulgação)

Em 2000, D’Angelo lançou “Voodoo”, gravado no Electric Lady Studios, em Nova York, com o coletivo Soulquarians, grupo que reunia nomes como Questlove, J Dilla, Erykah Badu e Common. O álbum explorava improvisos, grooves quebrados e texturas analógicas, mantendo uma atmosfera quase espiritual. Era um som livre e introspectivo, distante das fórmulas comerciais, que consolidou sua reputação como um dos músicos mais inventivos de sua geração.

A faixa “Untitled (How Does It Feel)” se tornou um sucesso mundial, mas a repercussão também teve um lado negativo. O videoclipe, que mostrava o artista praticamente nu, transformou-o em símbolo sexual, algo que ele rejeitava. O desconforto com a fama, somado a conflitos com a gravadora, levou D’Angelo a se afastar dos palcos por mais de uma década. Ainda assim, “Voodoo” é lembrado como um dos discos mais importantes do fim do século 20, referência constante para artistas do soul contemporâneo.

O retorno com “Black Messiah”

Quatorze anos depois, em 2014, D’Angelo voltou aos holofotes com “Black Messiah”, lançado em um contexto político tenso nos Estados Unidos, logo após os protestos de Ferguson. O álbum trouxe uma sonoridade mais densa e letras voltadas a temas como violência policial, fé e resistência. Canções como “The Charade” e “1000 Deaths” abordavam questões raciais e sociais. Já outras, como “Really Love, mostravam um artista mais maduro.

O disco foi bem recebido pela crítica e foi apontado como um dos trabalhos mais significativos da década. Musicalmente, “Black Messiah” se aproximava do legado de Sly & The Family Stone e Funkadelic, combinando groove e psicodelia em arranjos complexos. Foi também seu último trabalho de estúdio, sucedido apenas por lançamentos pontuais, como “Unshaken”, gravada para o jogo Red Dead Redemption 2, em 2018.

Um artista de poucos discos e muitas influências

A carreira de D’Angelo foi marcada por longos intervalos entre os lançamentos e uma resistência constante às pressões da indústria. As gravadoras esperavam mais produtividade, mas ele se mantinha fiel ao próprio ritmo. Essa postura, muitas vezes interpretada como isolamento, acabou definindo sua imagem de artista introspectivo e meticuloso.

Mesmo com uma obra btrbr, sua influência é incontestável. O neosoul se espalhou pelo mundo e inspirou artistas como Frank Ocean, Anderson .Paak, H.E.R., Solange e Daniel Caesar, que expandiram a herança deixada por ele. No Brasil, é possível perceber reflexos dessa estética na obra de Liniker, Luedji Luna e Tuyo, que exploram timbres orgânicos, introspecção e temas ligados à identidade negra e afetiva.

A morte de D’Angelo encerra uma trajetória rara em coerência e profundidade. Ele transformou o soul em algo mais livre, experimental e humano, mostrando que vulnerabilidade também pode ser força criativa. Sua ausência deixa uma lacuna difícil de preencher, mas a música que deixou continua sendo uma referência para quem acredita que arte e verdade caminham lado a lado.

Leia mais: