Artistas recorrem aos fãs para custear cuidados de saúde e expõem fragilidade do setor

Sem proteção social, músicos organizam vaquinhas para bancar tratamentos de saúde enquanto enfrentam dificuldades com acesso a direitos e serviços.
Foto de Nathália Pandeló
Nathália Pandeló
Pessoa sem acesso à saúde
Crédito: Pexels

Nos últimos anos, tornou-se cada vez mais comum encontrar campanhas de financiamento coletivo organizadas por músicos ou suas famílias para cobrir despesas com saúde. Acidentes, AVCs, complicações cardíacas, cirurgias ou tratamentos prolongados que impedem o artista de trabalhar desencadeiam um movimento de apoio entre fãs, colegas e amigos. A prática se repete tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, embora os contextos de acesso à saúde sejam bastante distintos.

Nos EUA, onde o sistema é privado e amplamente inacessível para trabalhadores autônomos, músicos afetados por doenças ou lesões muitas vezes dependem exclusivamente dessas doações para custear internações, medicamentos ou cuidadores. 

No Brasil, embora exista o SUS e outras alternativas institucionais, profissionais da música também enfrentam dificuldades concretas, desde a informalidade nas relações de trabalho até o pouco conhecimento sobre os direitos e recursos que podem ser acessados por meio de sindicatos e entidades representativas.

Debate sobre saúde de músicos ganha força após reportagens nos EUA

Pessoa fazendo fisioterapia - acesso à saúde
Crédito: Pexels

A discussão sobre a precariedade do acesso à saúde entre músicos ganhou novo fôlego após a publicação de duas reportagens de destaque nos Estados Unidos, pela Billboard e pela Vulture. Os textos revelam em detalhes como artistas de diferentes perfis (de novatos a veteranos) têm enfrentado doenças graves, tratamentos de alto custo e dificuldades para manter planos de saúde. 

Segundo dados divulgados por Theresa Wolters, vice-presidente da área de saúde da MusiCares, apenas 19% a 20% dos músicos norte-americanos possuem plano de saúde via empregador, em contraste com 50% a 55% da população geral. A maioria depende de planos com franquias altas, que, na prática, tornam os tratamentos inacessíveis mesmo para quem possui cobertura.

Além da dificuldade de manter um plano, artistas relatam frequentemente que, ao adoecer, ficam impossibilitados de trabalhar. Sem renda, acabam recorrendo a campanhas de doação online para bancar desde medicamentos até internações e fisioterapia. Nas reportagens, os músicos relatam ter acumulado dezenas de milhares de dólares em dívidas médicas, mesmo com planos ativos, e muitos afirmam ter deixado de buscar tratamento por medo dos custos. 

A instabilidade de renda, as regras rígidas de elegibilidade dos sindicatos e o aumento dos custos com medicamentos são citados como fatores que tornam o acesso à saúde um obstáculo permanente na vida de quem vive da música nos Estados Unidos.

A realidade dos músicos e os desafios da saúde

Pessoa com dor - acesso a saúde
Crédito: Kaboom Pics

Trabalhar com música envolve uma série de riscos que nem sempre são percebidos como problemas de saúde. Lesões em cordas vocais, dores crônicas provocadas por repetição de movimentos ou posturas incorretas, transtornos de ansiedade, estresse e exaustão são frequentes. 

A rotina intensa de shows, viagens e prazos, somada à instabilidade financeira e à alimentação irregular, afeta o bem-estar físico e mental dos artistas. Em alguns casos, há também a exposição contínua a álcool e outras substâncias, o que pode evoluir para quadros de dependência química.

Em situações mais graves, como infartos, AVCs, câncer ou acidentes, a necessidade de afastamento é imediata. E quando o artista vive exclusivamente da renda de apresentações ao vivo ou vendas diretas, esse afastamento significa a interrupção completa da renda. 

Mesmo com acesso ao SUS, a demora em atendimentos especializados, exames e reabilitação faz com que muitos optem por tratamentos particulares, mesmo sem condições financeiras para isso, o que leva a novas dívidas ou ao apelo público via redes sociais e plataformas de crowdfunding.

O papel de sindicatos e associações

Pessoa fazendo fisioterapia - acesso à saúde
Crédito: Pexels

Embora ainda pouco acionados, os sindicatos e associações de classe podem ser aliados importantes dos músicos nesses momentos. Entidades como o SindMusi-RJ e o SATED-SP oferecem serviços de apoio jurídico e orientação previdenciária, além de convênios com planos de saúde, clínicas, laboratórios e farmácias. Em alguns casos, há também acesso a telemedicina, atendimentos com nutricionistas ou psicólogos e suporte em processos de auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez.

Esses benefícios, no entanto, estão condicionados à filiação e à regularidade das contribuições sindicais. Muitos artistas não mantêm esse vínculo e, por isso, não conhecem os direitos que poderiam ser acessados. É recomendável que músicos de todo o país entrem em contato com os sindicatos regionais para entender quais recursos estão disponíveis e como iniciar o processo de regularização.

Sociedades de gestão coletiva, como a União Brasileira de Compositores (UBC), também têm papel relevante ao garantir o pagamento regular de direitos autorais, que podem se tornar uma fonte essencial de renda durante períodos de afastamento. Embora essas entidades não ofereçam assistência médica direta, elas promovem ações educativas e representativas que contribuem para o fortalecimento institucional da classe artística.

Saúde como pauta estrutural

A precariedade no acesso à saúde entre músicos revela uma fragilidade mais ampla no setor cultural. A falta de políticas públicas voltadas à proteção de artistas autônomos, combinada à descontinuidade de iniciativas emergenciais criadas durante a pandemia, deixa esses profissionais desamparados em momentos críticos. Muitos dependem da mobilização em torno de seus nomes, o que nem sempre é possível para artistas independentes ou com atuação mais regional.

Além das campanhas de arrecadação, há iniciativas coletivas que tentam oferecer suporte mais estruturado, como cooperativas culturais e fundos solidários criados entre músicos. Ainda que pontuais, esses mecanismos demonstram a disposição da classe em se organizar e buscar alternativas diante da ausência de um sistema mais confiável.

Buscar informações, manter vínculos com entidades representativas e planejar a carreira com perspectiva de longo prazo são estratégias que podem contribuir para minimizar os impactos das emergências de saúde. Ao mesmo tempo, é preciso que o tema da saúde dos músicos seja incorporado com mais urgência nas discussões sobre direitos trabalhistas e políticas culturais no país.

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